Pegou-lhe na mão.
“Alphonse, tu amas-me?“
“Bien súre, minha fofa.“
“Mas amas-me mesmo, Alphonse? Amas-me de verdade?“ Afonso franziu o sobrolho, espantado com a intensidade dos sentimentos que nela detectava.
“Claro, minha santa. O que se passa?“
“Amas-me como um soldado que amanhã me esquecerá ou como um homem que nunca me deixará?”
“Que pergunta, meu amor! Claro que nunca te deixarei, só se fosse louco. Amo-te com todas as minhas forças.“
“Vraiment?“
“Sim, amo-te acima de tudo, acima do meu ser. Tu és o ar que eu respiro, a alma que me preenche, a luz que me guia, a vida que me faz viver.“
“E o que vai ser de nós quando a guerra acabar?“
“Quando a guerra acabar, ma petite, eu fico aqui contigo. Fico aqui ou levo-te comigo. Nunca nos separaremos.“
A francesa fez um hum hum com a garganta, afinando a voz.
“Alphonse”, disse ela.
Hesitou e deixou a frase suspensa no ar. Fez-se silêncio.
“Sim“
“Alphonse”, recomeçou Agnès. “Fui hoje ao doutor Almeida.“
“Quem?“
“Fui ao doutor Almeida, um médico lá do hospital.“
“Ah, sim. Je suis enceinte. “
“ Como?”
“Estou grávida“
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XIII
Os bocejos pareciam contagiosos, sucedendo-se uns atrás dos outros, em sequência, os homens abriam a boca sucessivamente, aspirando o ar frio e húmido daquela madrugada de 9 de Março e expelindo-o num longo e vapo-roso suspiro. Afonso invejou o sono desses homens, só podia bocejar assim quem não tinha medo, quem não era consumido pela ânsia, quem não iria participar na operação. A artilharia trovejava havia quase uma hora, regando as posições inimigas, o horizonte acendera-se em fogo e, em pleno caos, pasme-se, havia homens a bocejar. O capitão olhou em redor e achou curiosa a diferença de postura dos soldados. As praças e os maqueiros da segunda companhia de Infantaria 21, serranos da Covilhã, encostavam-se modorrentamente aos parapeitos de Copse Trench, os olhos ensonados, era evidente que não iriam saltar para a terra de ninguém, cabia-lhes outra missão, os soldados iam guardar a primeira linha e cobrir os flancos da força de ataque e os maqueiros ficariam a assegurar a retirada dos feridos.
Mas já os outros, os que integravam a força de assalto, os que iam enfrentar a morte, esses agitavam-se bem despertos, nervosos e expectantes, os olhos dançando temerosamente em todas as direcções, as gargantas secas, a adrenalina a contaminar-lhes o sangue, a força a faltar-lhes nas pernas, um tremor invisível a consumir-lhes o ânimo perante o vulcão de fogo que se estendia à sua frente e para o qual se iriam lançar. Afonso sentia-se desgastado pelo medo, cansado da espera, desejava que tudo começasse depressa, não suportava mais a angústia de saber que iria combater. Se esse momento era inevitável, pensou, então que viesse já.
Olhou para Matias e admirou-se com o ar tranquilo que o cabo exibia, dir-se-ia estar convencido de que ia apenas dar um passeio até às linhas alemãs. Já o Lingrinhas agitava-se nervosamente, o corpo franzino a balouçar na penumbra como um pêndulo, irrequieto, os olhos saltitando por entre os clarões da artilharia, receosos, assustando-se com as sucessivas detonações que faziam trepidar o ar, parecia um pardal a tremer diante dos predadores.
Baltazar tinha as pálpebras cerradas, rezava decerto, os lábios agitando-se num leve murmúrio dirigido aos céus, o pensamento nos filhos que deixara em Pitões das Júnias. O
capitão virou o pulso e consultou pela enésima vez o seu Pate Philippe de pulso, os ponteiros incandescentes indicavam agora as quatro e cinquenta e cinco.
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“Faltam cinco minutos”, disse Afonso. “Vamos ao conhaque. “ Os homens desenroscaram os cantis, satisfeitos por ocuparem a mente, por a distraírem da cacofonia de explosões e da enervante espera, alguns engoliram o rum em golos sucessivos, sôfregos, deixando gotas escaparem-se-lhes pelo canto das bocas e deslizarem até ao queixo, outros saborearam o álcool com forçada lentidão, muito compenetrados, como se aquela fosse a última bebida das suas vidas, o derradeiro prazer antes do extertor final. A cada trago faziam uma pausa para expirarem o calor que lhes crescia pelo ventre a cima; o medo ainda por saciar, engoliam mais um golo ardente.
“Aaaah!“, exclamou Baltazar Velho. “Valente murrilha!“
Sentiram-se gradualmente mais calmos, tranquilos e descontraídos, o álcool subiu-lhes rapidamente à cabeça e dominou o medo, deixou-os serenos, invadidos por um sentimento de irrealidade, como se estivessem num sonho, o tempo abrandou, as batidas cardíacas desaceleraram e alguns esboçaram mesmo um sorriso.
“Esta bodega é porreira”, comentou Afonso, piscando o olho a Matias.
“Vamo-nos a eles, meu capitão, vamo-nos a eles! “, devolveu o enorme cabo, esfregando as mãos de impaciência, era a espera que mais o afligia. “Temos de lhes dar a paga de anteontem. “
Matias Grande referia-se a um raide efectuado dois dias antes pelos alemães sobre Neuve Chapelle e Ferme du Bois, rechaçado por Infantaria 15, de Tomar, e Infantaria 22, de Portalegre. Apesar de a operação ter redundado num fracasso para o inimigo, aos oficiais portugueses não passou despercebido o facto de se ter tratado do segundo raide alemão no espaço de apenas uma semana e do primeiro a envolver um assalto simultâneo a dois sectores portu-gueses.
“Estás parv'ou quê?“, cortou Vicente, olhando para Matias. “Ist'inda vai dar azar. Ai vai, vai. “
“Ó Manápulas, pára lá com os agoiros.“
Afonso voltou a consultar o relógio. Faltavam dois minutos. Um sargento de Infantaria 21 aproximou-se dos homens do 8.
“Meu capitão, é melhor tomarem posição.“
O oficial assentiu com a cabeça, fez sinal ao sargento Rosa e o pequeno grupo do 8
escalou o parapeito. Tacteando o terreno, os homens aninharam-se junto ao arame. O
sargento do 21 juntou-se a eles e indicou um ponto invisível na escuridão.
“Não se esqueçam, vão por ali”, disse. “O arame já está todo cortado e a via aberta.“
“Por ali?“, perguntou Afonso, preocupado em não se enganar. “Sim, por ali. Boa sorte.“
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O sargento voltou à trincheira, contente por não fazer parte da força de ataque.
Afonso ficou colado ao chão lamacento, os olhos fixos no relógio de aviador que Tim lhe tinha oferecido pelo Natal. Sorriu ao lembrar-se de que aqueles mesmos relógios de pulso foram durante anos considerados meras peças de joalharia, adornos semelhantes a pulseiras só adequadas a senhoras. Se os irmãos o vissem ali naquela figura, pensou, chamar-lhe-iam rabicho. Mas a verdade é que a guerra tinha mostrado que esta era a forma mais prática de transportar um relógio, e ali estava ele, com um rude Patek Philippe suíço, tornado mais feio pela grelha de metal que protegia a montra dos estilhaços. Suspirou e assinalou o tempo.
“Um minuto.“
O ponteiro dos segundos iniciou a última volta, progredindo inexoravel-mente, alguns homens rezavam baixinho, os olhos cerrados, os canhões rugiam, o ponteiro dos segundos começou a subir, tiques atrás de tiques, ponto a ponto para cima, Vicente fechou os olhos, Abel suspirou fundo, Matias desentorpeceu os braços, Baltazar fez o sinal da cruz, Rosa manteve-se hirto, o ponteiro subiu ainda mais e atingiu o cume, o fatídico 12.
“Vamos!“, ordenou Afonso.
O grupo do 8 ergueu-se da lama e desatou a correr, primeiro com prudên-cia, procurando o caminho aberto por entre o arame, depois mais rápido, mais rápido, todos em correria pela terra de ninguém, às escuras, as pernas moles de pavor, o grupo a tentar chegar o mais longe possível antes de os alemães darem pela sua presença, mais rápido, força, força, os soldados seguiam pelo itinerário previamente estudado, o terreno inclinava-se para cima, ressoavam os cliques e claques metálicos das Lee-Enfield embaionetadas, dos cintos, das munições, das Mills, das botas, mais o arfar ofegante dos homens em esforço, alguns tropeçavam na escuridão, as pernas sempre moles, Afonso caiu num charco invisível e logo se levantou, desengonçado, interrogou- se mil vezes sobre o que estava ali a fazer, que disparate era aquele. O torpor do álcool desaparecera, aniquilado pela adrenalina fulminante, mas o sentido de irrealidade permanecia, a sensação de sonho ainda os invadia a todos quando soou o primeiro tiro de espingarda, ouviram-se gritos do lado alemão, era o alerta, surgiram mais tiros, quatro, cinco, dez, vinte tiros, um foguete ergueu-se em Sally Trench e explodiu no ar, era um very light a iluminar a terra de ninguém. A luz fantasmagórica do foguete encheu as trincheiras como um pequeno sol, resgatando da penumbra minúsculas figuras em movimento, viam-se agora os soldados portugueses a correr em direcção às linhas inimigas, tropeçando em buracos, caindo em crateras, esbarrando em obstáculos, mais de cem homens da primeira companhia do 21 e um punhado do 8 vinham de Ferme du Bois e avançavam a descoberto pela terra de ninguém 360