em direcção ao inimigo, a Sally Trench, a Sapper Trench, a Mitzi Trench, as linhas alemãs aguardavam-nos. Mais very lights foram lançados para o ar, os alemães iluminaram o campo de batalha com sóis sucessivos, a noite fez-se dia, os tiros isolados das Mausers cresceram e misturaram-se à cacofonia da artilharia, as Maxims juntaram-se à festa e começaram a ladrar por toda a parte, voavam granadas e surgiram as primeiras explosões na terra de ninguém. E os portugueses sempre a correr, a correr, a correr.
A primeira linha alemã apareceu-lhes inesperadamente em frente, por detrás de uma derradeira vedação de espesso arame farpado.
“Alicates!“, gritou Afonso logo que caiu junto ao arame com os seus homens.
Uma praça do 21 aproximou-se rapidamente e, as mãos protegidas por umas luvas muito grossas, começou a cortar o arame com urgência, claque aqui, claque ali, claque, claque, os fios metálicos contorciam-se, as agulhas do arame balouçavam com maldade, procurando rasgar a pele de quem as mutilava, mas o homem evitava-as com perícia e ia abrindo o caminho, devagar, devagar, todos impacientes, o homem do alicate não havia meio de se despachar, claque, claque, todos deitados no chão, cada um a vigiar o inimigo, um olho nos alemães, o outro no homem do alicate, claque, claque, o alicate sempre a cortar o arame, o céu iluminava-se com foguetes e no solo dançavam as sombras, zzziiimm, zzziiimm, as balas a cortarem o ar em zumbidos sucessivos, em sibilos metálicos, em assobios de morte, traiçoeiros e enervantes, claque, claque, zzziiimm, zzziiimm, claque, claque, zzziiimm, zzziiimm.
“Já está”, anunciou por fim a praça, banhada em suor naquela madrugada gelada.
Os portugueses ergueram-se, penetraram temerosamente pelo caminho aberto pelo alicate, alguns rasgaram a pele nas pontas soltas do arame mas avançaram na mesma, saltaram à pressa para o buraco da primeira linha inimiga, as espingardas apontadas, os olhos atentos, procurando vultos ameaçadores, a trincheira parecia deserta mas o ar era sempre cortado por zumbidos, sibilos, assobios.
“Abriguem-se!“, ordenou Afonso, sentindo as balas a zurzirem como moscas em redor.
Os homens anicharam-se às paredes. O capitão olhou em volta e viu praças do 21
misturadas com o seu pelotão do 8. Matias esticou a cabeça acima do nível do parapeito para lobrigar o inimigo, detectou clarões de armas a serem disparadas e logo se encolheu.
“Estão naquela direcção”, indicou entre duas arfadas, apontando com a mão para a direita.
O cabo ajeitou a Lewis, respirou fundo para recuperar o fôlego, ergueu-se num ímpeto, apontou a metralhadora para o sector que identificara e começou a vomitar rajadas.
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Os outros homens, encorajados pelo exemplo de Matias, ergueram-se igualmente e dispararam as Lee-Enfield na mesma direcção. Os very lights continuavam activos, iluminando a batalha, e os portugueses viram os alemães lá ao fundo a fugir.
“Fogo à vontade! “, exclamou Afonso, a pistola na mão. A Lewis e as Lee-Enfield despejavam balas e balas sobre os fugitivos, alguns tombaram no chão, um ou outro ainda se levantou e retomou a corrida em dificuldade, a coxear, o fogo permaneceu intenso até os alemães que ainda se encontravam em pé saírem do campo de visão. Afonso chamou então o sinaleiro do seu grupo. O homem aproximou-se com o telefone na mão, o fio esticado desde as linhas portuguesas. Afonso fez sinal ao sargento Rosa.
“Larga o foguete de chegada “
O sargento pegou num very light e disparou-o para o céu.
O foguete explodiu em luz vermelha lá em cima, lançando uma claridade de sangue sobre as linhas. Outros very lights vermelhos explodiram à direita e à esquerda. Era o sinal convencionado para anunciar às linhas portuguesas que a primeira linha alemã se encontrava ocupada pelo CEP. Satisfeito com a indicação de que as coisas estavam a correr bem com os outros pelotões, Afon so pegou no telefone.
“Aqui pelotão do centro”, anunciou o capitão pelo bocal. “Estamos em posição.
Henrique. Repito. Henrique. “
“Henrique” era o nome de código para a artilharia portuguesa alongar o tiro para a retaguarda alemã. A ideia era fustigar o inimigo e evitar atingir as tropas portuguesas instaladas na primeira linha alemã.
Logo que a artilharia corrigiu o tiro, Afonso fez sinal aos homens e o grupo progrediu cautelosamente por uma trincheira de comunicação com o intuito de limpar o terreno, os soldados avançando curvados e de espingarda em riste. Matias ia à frente, a pesada Lewis nos braços, seguido do sargento Rosa e de Abel, atrás vinham Afonso, Vicente e Baltazar, mais os homens do 21. Viram um buraco à direita e hesitaram.
“Um abrigo”, murmurou Matias para trás, a metralhadora apontada para um buraco aberto na base de um maciço bloco de cimento.
Afonso aproximou-se e verificou a entrada do abrigo sem se atrever a aproximar-se.
“Façam-me a limpeza disso.“
O sargento Rosa disparou dois tiros para o interior e ficou a aguardar. Nada. Matias avançou, colocou o cano da Lewis pelo buraco e espreitou. Estava tudo escuro.
“Lanterna.“
Afonso deu uma lanterna eléctrica ao sargento Rosa, que a colocou nas mãos do cabo. Matias acendeu a luz e verificou o abrigo. O clarão percorreu as paredes, viam-se 362
estantes com livros nas paredes, fios eléctricos e lâmpadas penduradas no tecto. A luz da lanterna desceu pelo chão, iluminaram-se sofás, cadeiras, camas duplas com grossos cobertores, o soalho parecia seco. Ao fim de algum tempo, Matias deu-se por satisfeito e voltou a cabeça para trás.
“Não está cá ninguém”, disse aos companheiros. De seguida, o cabo mergulhou no buraco e desceu para inspeccionar melhor o abrigo. Atrás dele seguiram os outros homens do 8 e alguns do 21, todos embasbacados com o bunker alemão.
“Ena, caraças, já me toparam isto? “, exclamou Baltazar. “Isto é um abrigo de reis!
Porra! Que categoria! “
“É do camano”, confirmou Vicente, sentando-se com visível prazer na superfície fofa do sofá. “Andamos nós a viver na lama e estes gajos a refaste-larem-se nestes palacetes. Sim senhor, ist'é qu'é vida! A eles tratam-nos bem. Já connosco é o qu'a malta sabe...“