“Se o pessoal tivesse um hotel destes, até nem me importava de andar nas trinchas”, gracejou Baltazar. “Categoria! “
Afonso sentia-se igualmente surpreendido com a qualidade do abrigo, era, de longe, superior a qualquer coisa existente no CEP ou mesmo nas posições britânicas que visitara.
Mas a estupefacção durou pouco. Tinha pressa em sair dali, completar a missão e regressar à segurança relativa das trincheiras portuguesas. Constatou que não havia documentos para apreender e decidiu abandonar o local.
“Vamos, vamos embora daqui! “, ordenou. “Vamos lá, vamos lá, rápido! “ Os homens saíram do abrigo e regressaram à trincheira de comunicação, restabelecendo-se a hierarquia anterior. Matias à frente, Rosa logo a seguir, os restantes atrás. A trincheira fez uma leve curva à esquerda e, no meio daquela escuridão iluminada pelos clarões da artilharia e pelos sucessivos very lights, o cabo detectou um vulto a desaparecer ao fundo.
“Boches! “, avisou.
O grupo parou por momentos e, após uma ligeira hesitação, retomou a marcha, Matias muito atento a qualquer movimento.
Trinta metros mais à frente, perto do sector onde tinha visto o vulto, deparou com novo buraco, desta feita à esquerda, na base do parapeito.
“Abrigo.“
Mais uma paragem. Rosa repetiu o procedimento anterior e disparou dois tiros para o esconderijo. Ouviu-se barulho lá dentro e um tiro respondeu ao fogo português.
“Granadas”, pediu Matias.
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Rosa entregou-lhe duas Mills, Matias pegou numa, premiu a alavanca, puxou pela argola e arrancou a cavilha de segurança, atirou-a pelo buraco e repetiu a operação com a outra. Ouviram-se gritos em alemão, “achtung!“, “was ist das?“, “granate!“, sucederam-se duas explosões, veio o silêncio, ouviu-se um gemido e Matias aproximou-se da entrada do abrigo, apontou a lanterna e viu estantes partidas, um corpo estendido de bruços, uma perna decepada, um outro corpo pendurado numa cadeira, um terceiro a mexer-se no chão, barriga para o ar, o ventre aberto e os intestinos a escorregarem-lhe pelas mãos, o homem a olhar surpreendido para as suas entranhas expostas. Ergueu os olhos e mirou Matias.
“Entschuldigen... Sie bitte!“, disse, arfando. “Knnen Sie... mir helfen?“ Respirou fundo. Gemeu. “Bitte... Kamerad.“
Matias olhou para trás, para os seus companheiros. “O abrigo está limpo.“
“Os boches?“, quis saber Afonso. “Estão dois mortos e um ferido“ O capitão espreitou pela entrada e viu o alemão estendido no chão, a gemer.
“Coitado”, comentou. “Já viram que ficou com as tripas de fora? Matias assentiu com a cabeça. “Não se safa. Está a bombar.“
O alemão insistiu, o esgar perdido.
“Bitte.” Arfou. “Kamerad.“ Gemeu. “Knnen... Sie mir. Helfen” Afonso entendeu.
“Está a pedir ajuda”, explicou. “Se calhar, é melhor dar-lhe um tiro, acaba-se-lhe já o sofrimento”
O capitão olhou em redor, como que a pedir voluntários. Matias baixou os olhos, os que estavam atrás fizeram- se desentendidos. Afonso voltou a mirar o alemão, ergueu a pistola, apontou-a à cabeça do homem, deixou-a apontada, aguardou, hesitou terrivelmente, pensou que era um acto de caridade, de mise-ricórdia, mas logo outro pensamento contrapôs, lembrando-lhe que ia matar alguém, que ia pecar, era talvez a sua reprimida consciência de seminarista a revoltar-se, pensou e hesitou, a hesitação prolongou-se, o alemão agonizante devolveu-lhe o olhar, percebeu tudo, os olhos azuis miravam- no aterrorizados, viam o abismo, viam o fim. Afonso suspirou e baixou a pistola. Não era capaz.
“Vamos embora”, disse pesadamente, regressando à trincheira de comunicação.
O grupo avançou pelas linhas abandonadas pelo inimigo e chegou à Mitzi Trench.
Mais abrigos desertos foram inspeccionados, todos revelando condições de habitabilidade infinitamente superiores às existentes do lado aliado. Afonso chamou os sapadores-mineiros da terceira companhia, igualmente envolvidos na operação, e os abrigos foram arrasados. Pouco depois, um very light verde iluminou o céu à direita. Era o sinal de 364
retirada dado pelo comandante da operação, o capitão Ribeiro de Carvalho. Os homens regressaram à primeira linha alemã e Afonso voltou ao telefone do sinaleiro.
“Aqui pelotão do centro”, anunciou. “António. Repito. António.
Tratava-se da palavra de código a informar que ia retirar. Devolveu o telefone ao sinaleiro e deu ordem de retirada. O grupo meteu pela brecha aberta no arame farpado, atravessou a terra de ninguém e regressou a Copse Trench, o ponto de Ferme du Bois donde tinham partido duas horas antes.
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XIV
Afonso abandonou as linhas num estado de total exaustão e, tal como todos os homens que participaram no raide, beneficiou de uma dispensa de dois dias. Depois de apresentar um relatório ao major Montalvão, o coman-dante de Infantaria 8, requisitou um cavalo e foi até Béthune, ao anexo que se tinha transformado no seu lar. Deixou a montada amarrada a um carvalho, junto a um bebedouro, e caminhou ansiosamente para o cubículo alugado por Agnès. Estacou frente à porta de madeira tosca, procurou a chave no bolso, colocou-a na fechadura e entrou.
“Agnès“
Ninguém respondeu. Olhou em redor e verificou que tudo se encontrava bem arrumado e o anexo relativamente aquecido. A sua francesa tinha provavelmente ido trabalhar, mas deixara o anexo impecável antes de sair. Afonso fechou a porta, despiu o casaco, foi até ao bacio, mirou-se ao espelho, tinha o ar cansado, a barba por fazer, olheiras a ensombrarem-lhe os olhos. Pegou no jarro, despejou água fria nas mãos, lavou a cara, despiu a roupa imunda, tirou as botas enlameadas e as meias sujas, mergulhou os pés no bacio, a água estava tão fria que até os ouvidos lhe doeram, passou água pelo corpo, esforçando-se por retirar a lama seca que lhe cobria a pele, esfregou com sabão, voltou a passar água, depois mergulhou a cabeça na água barrenta, mais lama saiu, passou ainda uma toalha molhada pelo corpo, a tremer de frio secou-se apressadamente, colocou meias limpas, um pijama lavado, atirou-se para a cama e enroscou-se nos cobertores.
Uma superfície húmida, quente e macia colada às bochechas e um agradável e familiar aroma perfumado fizeram-no abrir os olhos. Viu uns lábios enormes à sua frente e levou dois segundos a compreender. Era Agnès que o beijava.
“Ça va, mon mignon? »
A voz era suave, quase uma carícia, e Afonso sentiu-se bem. “Olá mon petit choux”, disse com voz de sono.
Reparou então que estavam na penumbra, tudo se encontrava escuro, a noite caíra, passara todo o dia a dormir. A francesa passou-lhe a mão carinho-samente pelo rosto.
“Então como foi a guerra hoje? “
Afonso hesitou. Quis contar-lhe tudo, relatar-lhe o raide, os mil perigos, o medo, os mortos e a história do alemão moribundo, ainda abriu a boca mas interrompeu-se a tempo, 366
pensou que era pouco avisado estar a relatar-lhe a operação, ela ficaria assustada e passaria a viver em sobressalto mais do que já vivia, mais valia que continuasse a acreditar que o seu capitão estava agora unicamente encarregado de tarefas burocráticas nas trincheiras.
“Tudo normal”, devolveu, fingindo-se despreocupado. “Muita papelada, muita papelada”