“Não fizeste des bêtises? “
“Non. “
“Não andaste atrás de demoiselles? “
“Nas trincheiras?
Ela riu-se.
“ Oh la la! São as piores! “, exclamou, piscando o adorável olho verde.
“Ah sim, o que para lá mais há são mesmo demoiselles!“, comentou Afonso com um sorriso amargo. “Parvinha “
Disse “parvinha” em português, e ela arregalou os olhos.
“Quoi?“
“Parvinha.“
“est quoi, ça?”
“Parvinha? Uh... sei lá, é tipo... uh... parvalhone.“
“Parvalhone?”
Afonso riu-se. Quando não sabia qual a exacta palavra francesa, afrance-sava uma palavra portuguesa, mas nem sempre saía bem.
“Não interessa”, disse, desistindo de procurar a palavra exacta. “Como vai o pequerrucho? “
Agnès olhou para o ventre. A protuberância da gravidez era ainda minúscula.
“Oh, tem-se portado bem, é um amor.“
“Temos de lhe escolher um nome. Já pensaste? “
“Oui”, disse ela, fazendo-se séria. “Por que não Alphonse, como o seu papá?
“Afonso? Não, vamos pensar noutro... “
“Temos sempre a hipótese do nome do meu pai. Como se diz Paul em português?“
“Paulo.“
“Hum, parece italiano.“ Fez um ar meditativo, apreciando a sonoridade do nome.
“Paolo. Gosto.“
“Paulo”, corrigiu Afonso. “Parece-me bem. “ Deu-lhe um beijo. “Mas, olha lá, e se for menina?“
367
“Se for menina, temos duas hipóteses. Ou Michelle, como a minha mãe, ou então o nome da tua mãe. Como é que ela se chama mesmo?”
“Mariana. “
“Mariana então. Um desses dois. “
“Por que não Inês? “
“Inês? Que nome é esse? “ “É Agnès em português. “
Agnès fez um trejeito de boca, pensativa.
“É uma ideia. Vamos amadurecer isso, afinal de contas temos tempo. O doutor Almeida disse-me que o parto só deve ser lá para Outubro “ Afonso fez nessa noite amor com intranquilidade, as imagens do raide, do alemão desventrado, da correria tresloucada, dos projécteis a sibilarem, tudo sempre na sua mente.
Olhava Agnès e via a guerra, os mortos, as explosões, os disparos, os very lights, os gritos, a crueldade, o medo. Teve dificuldade em concentrar-se. Depois de saciarem os corpos, agarrou-se a ela como se a fosse perder dentro de instantes. Emocionado, pegou-lhe na mão e fitou-a nos olhos.
“Queres casar comigo? “
Agnès estremeceu e abraçou-o com força.
“Oui, oui”, soprou. “Pensei que nunca irias perguntar.
Ele beijou-a nos lábios e sentiu-lhe a face molhada.
“Casamo-nos, temos o filho e vens comigo para Portugal. Vais ver aquele sol...“ Ela fungou.
“Oui.“
“Vou pedir uma licença para casar. Que dizes de final de Abril?“
“Parece-me difícil.“
“Porquê?“
“Alphonse, não te esqueças de que eu ainda estou casada. Já meti os papéis do divórcio, mas acho que só lá para o Verão serei uma mulher livre” Afonso suspirou, conformado.
“Então será no Verão. O problema é que a Igreja não aceita divórcios...
“Não sejas bête. Não vês que eu não me casei pela Igreja?
“Como assim, não te casaste pela Igreja?“
“Com Serge casei-me na igreja, mas ele morreu. Com Jacques, que é ateu, casei-me na Conservatória de Armentières. Portanto, para a Igreja eu nem sequer sou casada, sou viúva.
“Mas isso resolve tudo”, exclamou Afonso com entusiasmo.
368
“Assim sendo, casamos mesmo pela Igreja, comme il faut.” Pedimos ao capelão do Exército e fazemos a cerimónia ali na paróquia de Aire ou de Merville. “
“Não, aí não, é demasiado vulgar. Sempre sonhei num casamento gran-dioso. Por que não na Catedral de Amiens? “
“Na Catedral de... “
“A Catedral de Amiens é a maior de França, uma coisa magnífica.“
“Muito bem, será na Catedral de Amiens”, concordou. “Só é pena que a minha família não possa assistir”
Ficaram algum tempo agarrados um ao outro, em silêncio. De repente, Afonso pegou na vela que estava na mesinha de cabeceira, levantou-se, foi sentar-se à mesa, nu, cobriu-se com uma manta e rodeou- se da caneta, do tinteiro e de um papel de carta.
“O que estás tu a fazer? “, perguntou ela, apoiada sobre o cotovelo, na cama, admirada por vê-lo a escrever àquela hora.
“Vou escrever uma carta”, limitou-se a dizer.
Agnès ficou a observá-lo, o seu homem curvado sobre a folha de papel a desenhar as letras com a língua entre os lábios, relendo baixinho o que escre-vera naquele idioma desconhecido, volta e meia pousava a ponta da caneta no tinteiro e voltava a escrever.
Finalmente dobrou a folha, inseriu-a no envelope, passou a língua molhada pela cola, fechou o envelope e entregou-lho. A fran-cesa ficou a olhar para o sobrescrito, surpreendida.
“Escreveste-me a mim?“, perguntou sem compreender. “Não, escrevi à minha mãe.”
“Mas o que é que queres que eu faça com isto? Queres que a vá pôr no correio?”
“Não, não, isso seria mau sinal”, disse-lhe ele. “Só deves mandar essa carta se me acontecer alguma coisa, entendeste? “
A francesa fitou-o com alarme e ansiedade.
“Se te acontecer alguma coisa?”
“Não te preocupes, é uma mera medida de prevenção. Estamos em guerra, eu ando nas trincheiras, em princípio não acontece nada porque estou encarre-gado da papelada, não de combater, mas nunca se sabe, não é? De modo que, se me acontecer alguma coisa, o que não penso que venha a acontecer, mas, se acontecer, tens aí o contacto da minha mãe com todas as minhas explicações. “
“Que explicações?”
369
“As coisas normais em tais circunstâncias. Quem tu és, que eu te amo, que quero casar contigo, que tens o meu filho no ventre, que ela deve dar-te toda a assistência de que precisares, que todas as minhas poucas posses vão para ti... tudo.“ Agnès voltou a mirar a carta, atrapalhada.
“E a que propósito é que tu te lembraste disso agora, a esta hora?“ Ele abraçou-a.
“Sei lá, lembrei-me, pronto. “ Deu-lhe um beijo. “Mas não te preocupes, ma mignonne, já te disse que não morro nem que me matem, vais ver. Nem que me matem.
Aqui o teu Afonso é rijo como um carapau, está para lavar e durar. “ Depois de Agnès ter adormecido, o capitão permaneceu ainda longas horas desperto, a rever os acontecimentos da madrugada, segundo a segundo, imagem por imagem, emoção atrás de emoção. Sentia-se exausto mas, quando se foi deitar, tardou a adormecer, era a consciência que o apoquentava, a imagem do alemão com as entranhas de fora, a voz numa súplica de moribundo a ecoar-lhe na memória.
Teve vários pesadelos durante a noite, chegou a acordar transpirado, Agnès a acalmá-
lo, “tout va bien, mon petit, tout va bien”, sussurrou-lhe ela, mas quando acordou da última vez viu que a luz do Sol lhe entrava pela janela. Apalpou a cama, pro curando a francesa ao lado, mas a mão apenas encontrou o lençol, percebeu que ela já lá não estava, tinha ido trabalhar. Deixou-se ficar ainda uma meia hora na cama, meio para lá, meio para cá, no quentinho, na sorna, numa modorra gostosa, até que sentiu fome, bocejou e levantou- se. Era meio-dia. Vestiu uma farda lavada, colocou o sobretudo e saiu à rua.
Choviscava cá fora, mas o boné de oficial protegia-lhe a cabeça. Deu de comer e de beber ao cavalo, que permanecia atado à árvore, e seguiu a pé pela vila. A trovoada da artilharia mostrava-se nesse dia particularmente intensa e Afonso agradeceu aos céus por não se encontrar de serviço nas trincheiras. Cirandou pelas ruas de Béthune e foi a um estaminet muito frequentado pelos oficiais do CEP, a proprietária era madame Cazin, uma normanda rechonchuda e bem-disposta, boa compincha dos portugueses. Afonso sentou-se numa mesa à janela e a senhora Cazin trouxe-lhe uma marmite Dieppoise, um suculento prato da sua Dieppe natal, servido num tacho onde se misturavam peixe, mariscos e molho de natas, com uma tarte normande a rematar, tudu regado a poiré, uma bebida tradicional normanda feita a partir de peras. Estava já ele a trincar a maçã da tarte quando viu um rosto familiar entrar no estaminet.