“Então, se isso pode ser feito, por que é que não vamos? “, quis saber Agnès.
“Porque não existe ainda um canhão com essa potência nem uma bala concebida para tal propósito”, explicou Paul, afagando-lhe o cabelo encaraco-lado. “Além do mais, minha querida, há outros problemas a considerar. Sabem, ir à Lua ainda vá que não vá, mas voltar é que é o diabo, não há por lá canhões capazes de atirarem a bala para cá.“ Embrenharam-se assim os seis a conversar, a divagar, sonhadores, circundaram distraidamente o Touring Club e o lago e, quase roçando um pilar da Torre Eiffel, entraram na grande alameda do Champ-de-Mars, evitaram os Quiosques à la musique, admiraram superficialmente as rosas, as tulipas, as magnólias, as violetas e as margaridas que coloriam os jardins e só se calaram quando desembocaram no Palais de l'Électricité, uma magnífica estrutura de aço contorcido e arqueado, a armadura coberta de vidros, expondo entranhas 37
de ferro, espelhos, colunas, arcos, curvas, arabescos, tudo concentrado numa arquitectura que se transformara num festim de metal, numa orgia de ferros, de cúpulas envidraçadas, de fachadas vistosas, embrulhadas em garridas bandeiras tricolores. Subiram ao primeiro andar e espantaram-se com os tubos de Geissler a iluminarem-se, os radiadores a emitirem calor sem lenha, as campainhas a soarem sem corda, as lâmpadas incandescentes a jorrarem luz sem velas, os théâtrophones, os télégraphones, os telefones incripteurs a registarem mensagens, os comboios em miniatura a circularem em carris minúsculos, na verdade tudo aquilo se revelava um estranho e desconcertante concerto eléctrico caoticamente conduzido por um invisível e confuso maestro.
O espectáculo do Cinématographe Lumière estava prestes a começar e os seis dirigiram-se apressadamente para a Salle des Fêtes, uma enorme estrutura metálica construída circularmente no centro da monumental Galérie des Machines, um pavilhão de ferro erguido para a Exposição de 1889 com o intuito de celebrar o triunfo da indústria e da técnica e agora considerado demodé. Quando chegaram ao local, comprimido entre o Palais de l'Électricité e a Avenue de la Motte-Picquet, os Chevallier depararam-se com uma enorme multidão a convergir para o mesmo espectáculo, de modo que tiveram de fazer fila para entrarem na galeria. A Machines era uma gigantesca estrutura de ferro e vidro com mais de quatrocentos metros de comprimento, o portão e a abóbada em arco, um espaço colossal no interior. Um cartaz anunciava a estreia do primeiro Cinématographe Lumière gigante e milhares de pessoas dirigiam-se à galeria para assistirem ao evento.
Os Chevallier entraram na Salle des Fêtes da Machines pelos dois lanços descendentes da enorme escadaria e foram sentar-se nas cadeiras colocadas ao longo de todo o perímetro do edifício circular, havia ali vinte e cinco mil lugares disponíveis e claramente não seriam de mais perante o extraordinário interesse que o espectáculo estava a suscitar. Agnès acomodou-se entre Claudette e a mãe e ficou a mirar o imenso pano branco erguido verticalmente no centro da gigantesca galeria, mesmo por baixo da cúpula envidraçada, ela não o sabia mas aquilo era um ecrã de quatrocentos metros quadrados, de longe o maior do mundo. O enorme pano estava molhado, encontrava-se preso à cúpula de vidro por um gancho e pairava sobre um largo tanque de água, donde tinha sido içado.
Agnès interrogou-se quanto ao seu propósito, nada daquilo tinha o ar tecnologicamente avançado das estruturas de ferro que o circundavam.
Quando já não cabiam mais pessoas na galeria, os portões ovais foram fechados e, após uma breve pausa expectante, um feixe de luz cortou a sombra e incidiu sobre o pano gigante. Soltou-se um entusiástico “ah” da multidão e Agnès observou, pasmada, pessoas a mexerem-se no pano molhado, a água embebida no tecido a absorver a luz, as formas a 38
preto e branco a evoluírem com gestos bruscos na tela. Durante vinte e cinco minutos passaram quinze filmes, os suficientes para deixarem a multidão hipnotizada e Agnès fascinada com o mundo do cinema.
A visita à Exposição Universal de Paris produziu uma profunda impressão na rapariga, foram, na verdade, os dois dias mais felizes da sua infância. Uma vez regressada a Lille, todas aquelas maravilhas, formadas por torres de ferro, fotografias que se mexiam em panos molhados e telescópios que mostravam a Lua a um metro de distância, foram sucessivamente revistas na memória, objecto de conversas, de especulações, de fantasias sonhadoras, como seria magnífico o século XX que agora começava, como era belo o futuro que aquelas máquinas deixavam adivinhar, como é grande o engenho do homem, como é gloriosa a ciência francesa.
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III
A senhora Mariana era uma mulher religiosa e de princípios. Todas as segundas-feiras ia ao baú onde o marido guardava o trigo e tirava uma mão-cheia de cereal, levando-o depois ao moinho do Silvestre, o mesmo que tinha a taberna. O trigo era aí moído e transformado em farinha. Quando regressava a casa, acendia o forno com lenha trazida do Cidral pela burra e cozia o pão, que durava até domingo sempre fresco.
Um dia, ao acompanhar a mãe ao moinho, Afonso ficou fascinado com um peso de ferro usado na balança decimal e meteu-o inocentemente ao bolso. Mariana descobriu o peso roubado já em casa e arrastou o filho por uma orelha durante todo o caminho até ao moinho, onde devolveu o objecto, e obrigou Afonso a pedir desculpas. O pequeno descobriu duas coisas de uma assentada. Percebeu o que era o roubo e compreendeu que a mãe ficava muito zangada se ele roubasse.
A senhora Mariana fazia também a panela de misturadas, uma sopa muito rica que juntava todos os alimentos, desde hortaliças, feijões e batatas até à carne e aos chouriços, numa versão ribatejana da sopa de pedra e que veio substituir as sopas de cavalo cansado da infância. Tal como o pão, as mistu-radas duravam toda a semana sem se estragarem.
Muitas vezes adicionava-se farinha ou pão de milho esfarelado às misturadas, juntamente com azeite e alho cortado, para fazer suculentos magustos. Outras opções eram voltadas para o mar. Afonso acompanhava frequentemente a mãe até à praça e saltava de exci-tação quando ela trazia peixe. Em casa, cada sardinha ou cada chicharro, que o pequeno apreciava mais do que os outros, alimentava duas pessoas. Afonso dividia sempre o seu peixe com Joaquim, ficando com a cabeça e o irmão com o resto. No caso das sardinhas, devorava a cabeça toda, espinhas incluídas, mas com os chicharros era diferente. Dissecava-os como numa autópsia, limpando com a língua a cartilagem da cabeça e saboreando os olhos como se fossem uma iguaria sem igual. O problema é que uma única cabeça de peixe como refeição deixava-o esfomeado e não raras vezes subia sub-repticiamente às árvores de fruta em quintais alheios para surripiar peças que completavam a refeição.
A higiene era descontraída, para utilizar um eufemismo simpático. O banho dominical, que, de resto, só existia no Verão, constituía a única verdadeira limpeza pessoal da família, tomado à pressa e sem rigor, ou não fosse a água gelada um elemento fortemente dissuasor da higiene cuidada. As necessidades eram feitas de cócoras no quintal, 40
junto à pocilga, ou entre as árvores do pinhal que se estendia por detrás da casa. À noite era diferente, Afonso e os dois irmãos tinham um pequeno bacio de louça guardado debaixo da cama e para onde se aliviavam caso houvesse necessidade a meio do sono, sendo o conteúdo despejado na pocilga logo pela manhã. Limpar o rabo foi um conceito desconhecido nos primeiros anos, até que João começou a comprar por dez réis O Século para prospeccionar as propostas de emprego e conhecer a evolução dos jogos do Football Club Lisbonense com os rivais do Real Casa Pia, do Club de Campo de Ourique e dos ingleses do Carcavellos Club. Quando a leitura estava completa, os três irmãos passaram a usar as folhas gigantes do jornal para se limparem depois de defecarem, mas os pais não foram em modernices. O senhor Rafael era analfabeto e considerava que não tinha nenhum uso para o jornal, nem sequer para a limpeza, e a senhora Mariana partilhava o mesmo ponto de vista. Afonso via por vezes a mãe ir para o quintal, abrir as pernas de pé e aliviar-se sem sequer levantar a saia. Não usava cuecas e as necessidades eram feitas assim, livres de complicações de maior.