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“Psst, Mascarenhas”, chamou. “Ó Mascarenhas! Mascarenhas! “ O seu amigo transmontano da Escola do Exército, o sportinguista dos cinco costados que era segundo comandante de Infantaria 13, veio ter consigo.

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“Ora viva, Afonso! Com que então por aqui? “

“Cá vamos. Senta-te, homem. “

O major Mascarenhas acomodou-se na cadeira em frente, a claridade da luz do dia a penetrar pela janela e a iluminar-lhe o lado direito do rosto.

“O que é que andas aqui a fazer?“, perguntou o recém-chegado. “Deser-taste ou quê?

Que eu saiba, o 8 está nas linhas e aquilo anda hoje bem quentinho.“

“Pois anda, mas eu estou de licença, graças a Deus.“ “Ah sim? Quem é que tiveste de subornar, meu sacripanta?“ “Não me digas nada, homem. Participei ontem de madrugada num raide à Mitzi.“

“O quê? O raide do 21? Tu estiveste lá? “

“Estive pois. “

“Mas o que é que tu andavas a fazer no raide do 21? Mudaste de batalhão ou quê? “

“É muito complicado, Mascarenhas, muito complicado. Coisas de política dentro do CEP. Era uma operação da 1.a Divisão, mas o pessoal da 2.a também quis um quinhão e quem serviu de carne para canhão foi aqui o teu amiguinho“

“Ena, caramba”, riu-se Mascarenhas. “Não me digas. Conta lá como foi aquilo “

“Correu mais ou menos”

“Mais ou menos? Fala-se num grande êxito, nos objectivos todos alcan-çados e numa catadupa de cruzes de guerra e promoções a caminho...

Afonso encolheu os ombros, cansado.

“Sim, sob esse ponto de vista não correu mal. No conjunto de todos os pelotões que participaram no raide, matámos um porradal de boches, fizemos um prisioneiro, destruímos um decauville e uma data de abrigos, não foi mal. “

“Vocês sofreram muitas baixas? “

“No meu pelotão, nenhuma. Mas, nos outros pelotões, mais de uma dezena de homens ficaram feridos, incluindo um alferes e um tenente. Acho que encontraram um abrigo que era um verdadeiro vespeiro de boches, mas mataram-nos todos. Ou melhor, quase todos, ainda prenderam um, vá lá. “

“Ouvi dizer que os nossos dois oficiais que ficaram feridos estão mal”, comentou Mascarenhas em voz baixa. Fez- se, por um momento, um silêncio embaraçado, mas o transmontano depressa relançou a conversa em tom mais animado. “E tu? Viste muitos boches?”

“Nem por isso. Os gajos pisgaram-se, ainda apanhámos uns quantos em fuga e outros escondidos nos abrigos, mas nada de especial. “

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“Espero que o raide tenha posto os tipos em sentido. Andam a ficar cada vez mais atrevidotes, com os ataques que nos lançaram nos dias 2 e 7. Já reparaste que os gajos intensificaram as operações?

“É, está a chegar a Primavera, a lama começa a secar e a coisa vai aquecer.

“Mas não são só os raides”, insistiu o major. “Estive a ler os relatórios e reparei que os tipos intensificaram também as patrulhas, este mês já tentaram entrar várias vezes à sucapa na nossa primeira linha. Ora isso raramente acontecia antes.“

“Ah sim? Não sabia disso...“

“E já notaste que a artilharia boche tem estado mais activa do que o normal?”

“Issu eu já tinha reparado. Interrogo-me sobre o que é que eles andam a congeminar.

Aliás, o próprio Mardel anda preocupado, daí o raide que ontem fizemos. “

“Pois hoje as coisas voltaram a aquecer, o comando teve informações de que os gajos iam atacar a todo o momento e emitiu uma ordem para a nossa artilharia bombardear Piètre, Ligny le Petit e alguns sectores da retaguarda por alturas de Illies. De modo que, neste momento, vai para lá uma actividade danada.“

Ficaram os dois a ouvir o rumor distante da artilharia, os canhões portu-gueses e alemães em fogo e contrafogo. Madame Cazin aproximou-se entre-tanto da mesa com a ementa. Mascarenhas consultou a lista e pediu umas andouilles com maçã. A dona do estaminet afastou-se e o major piscou o olho a Afonso.

“Não sei que treta é esta das andouilles, mas pelo nome parece uma ave. Será que são andorinhas?“

Afonso sorriu.

“Chouriço em tripas”, disse.

“Tripas?“

“Recheadas de chouriço. E maçãs. Os normandos põem maçãs em tudo. “

“Normandos?“

“Sim, homem, normandos. Não sabias que a dona deste estaminet é normanda?“

“O quê? Aquela? Uma viking?“

“Não, homem, a Normandia é uma região de França aqui perto, junto à costa. Ela veio de lá, é só isso.“

“Ah”, exclamou. Fez uma pausa e ficou a pensar no prato que encomen-dara. “Não desgosto de tripas, nem de chouriço. Lá em Vila Real comemos isso e muito mais “ Permaneceram os dois calados, a olhar pela janela que se encontrava ao lado da mesa.

Afonso bebeu o último trago do poiré.

“Sabes que mais me admirou quando andámos ontem a passear lá pela Mitzi?“ 372

“O quê?”

“As trinchas dos gajos.“

“ O que é que têm.“

“São de um luxo do caraças. Tudo bem tratado, o chão seco, sofás, beliches, livros, iluminação eléctrica, gramofones, relógios de pêndulo, tapetes, eu sei lá. Até vi um abrigo decorado com papel de parede, vê lá tu.“

“Estás a reinar.“

“A sério. Aquilo é incrível, parece que estão em casa, é tudo muito asseado, muito organizadinho. Além do mais, são de uma segurança a toda a prova. Os abrigos da linha estão cavados em profundidade, defendidos por paredes de betão e ligados uns aos outros por uma rede de túneis subterrâneos. Não dá para acreditar”

“Mas isso é mesmo assim? “

“É como te digo. O Tim já uma vez me tinha dito issn, só que eu não acreditei, achei que eram balelas. Mas agora que vi... “Como é que eles conse-guem ter isso tudo assim tão arranjadinho.“

“Investiram muito nas instalações de defesa. Ao que parece, enquanto nós consideramos as trincheiras um local de passagem, um abrigo efémero enquanto não os obrigamos a recuar, eles consideram-nas um posto de permanência a longo prazo, um sítio donde nunca sairão. Os nossos comandos acham que temos de permanecer desconfortáveis para que tenhamos vontade de os expulsar, dizem eles que é para mantermos o espírito ofensivo. Já os comandos dos tipos pensam que a sua tropa tem de permanecer confortável para não ter vontade de recuar. De modo que, enquanto a malta está na pocilga, os gajos refastelam-se em sumptuosas mansões cavadas na terra.“ Mascarenhas abriu as mãos com as palmas para cima, num gesto confor-mado.

“C'est la vie “

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XV

A mão direita curvou-se em garra, as unhas encardidas da sujidade preta da lama escura da terra, aquela lama viscosa e peganhenta que tudo invadia e tudo impregnava, insidiosa e tão omnipresente que a ela todos se tinham resignado. Vicente meteu a mão por baixo da camisa e coçou o ombro esquerdo.

“Porra p'rás pulgas!“, exclamou, voltando o pescoço para o lado onde sentiu a comichão. Ergueu ligeiramente a camisa, pela gola, e espreitou para a borbulha vermelha nascida da picada do parasita. Acto contínuo, a mesma mão foi coçar o couro cabeludo, irritado pelos piolhos. Vicente passou os olhos pelo abrigo e suspirou de enervação. “Só mesm'a nós é que nos põem neste gali-nheiro”, resmungou. “Quem viu os boches a viverem como fidalgos, lá nos seus palacetes subterrâneos, e quem nos vê p'rá'qui, neste buraco cheio de lam'e merda, deve pensar que somos parvos.“ Calou-se por instantes, a reflectir. “E sabem que mais? Somos mesmo. Somos parvos, som'uns grandes parvos por nos sujeitarmos a estas condições, e todos caladinhos, enquant'os cabrões dos oficiais s'abotoam c'as melhores instalações, os bons ranchos, as grandes vinhaças e as gajas boas, e s'estão a cagar p'ra nós. A cagar.”