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A artilharia calou-se nesse momento e os soldados respiraram de alívio. Matias arrumou a Lewis a um canto, sacudiu as mãos e ergueu-se, decidido.

“Malta”, disse então. “Vamos lá tratar da saúde aos ratos.“ “Como assim, tratar-lhes da saúde?“, admirou-se Baltazar. O cabo ignorou a pergunta.

“Abel e Vicente, vão lá fora buscar quatro pás.“ Os dois soldados ergue-ram-se, sem nada compreenderem, penduraram as máscaras antigás ao pesco-ço, não fosse o diabo tecê-las, e saíram do abrigo para executarem a ordem. Matias acocorou-se junto às provisões, tirou uma lata de corned-beefe e abriu-a. As praças regressaram, entretanto, com as quatro pás e ficaram a aguardar instruções. O cabo pegou em duas pás, ficou com uma na mão e entregou a outra a Baltazar. De seguida, espalhou um pouco de corned-beef pelo chão húmido do abrigo e olhou para os seus homens.

“Vamos apagar a luz. Quando os gajos aparecerem e vierem para aqui manducar a carne, à minha ordem começamos a aviá-los com as pás. Entendido?“ Todos murmuraram que sim e foram apagar os candeeiros. Logo que o abrigo mergulhou na escuridão, ouviu-se o habitual som das patinhas a percorrerem o soalho molhado e a convergirem para o local onde se encontrava a comida. Escutaram-se pequenos corpos a roçar uns nos outros, atarefados e gulosos, certamente que se amontoavam, sôfregos, esfaimados, disputando com ferocidade o mísero pedaço de carne.

“Agora! “, exclamou Matias.

Os quatro homens despejaram as pás sobre o molho invisível de ratos, acertaram no sítio onde estava a carne e ouviram guinchos a escaparem-se do chão. Sempre às escuras, reergueram as pás e voltaram a bater, desta vez usando o perfil da concha da pá como se 377

fosse uma lâmina gigante, e bateram ainda mais uma e outra vez, por vezes as pás atrapalhando-se umas às outras, mas batendo na mesma. Ouviram os ratos a espraiarem-se pelo abrigo, em pânico, e a violência terminou tão depressa como começara. Sentindo a calma restabelecida, Baltazar reacendeu os candeeiros. A luz revelou pequenos corpos negros e castanhos estendidos no chão, ensanguentados, mutilados, contaram sete, dois mortos, três moribundos, dois feridos. Os que ainda mexiam foram prontamente aniquilados pelas vingativas pás. Terminada a matança dos sobreviventes, os soldados encheram as pás de corpos desfeitos de ratos e ratazanas e levaram-nos para as trincheiras.

Chovia lá fora. Atiraram os corpos para poças de lama que se encontravam para além do parapeito e repararam que nesses charcos havia outros ratos, vivos, a nadar, os narizinhos espetados à superfície, todos a convergirem para os cadáveres recém-chegados.

“Que se comam uns aos outros! “, disse Baltazar com um esgar de nojo. “Bom proveito”

Soaram nesse instante as buzinas Strombos. O soldado colocou a máscara no rosto e apressou o passo em direcção ao abrigo. Vinha aí gás.

Afonso e Pinto foram na manhã de 18 de Março ao Laventie East Post para coordenarem o apoio às primeiras linhas. O regresso da Primavera tinha sido turbulento, com as posições portuguesas a enfrentarem sucessivos vendavais de bombardeamentos alemães. O inimigo lançou novos raides a 12 e nesse dia 18, reflectindo um aumento de actividade que provocou uma razia entre os depauperados efectivos portugueses. Quando o último raide terminou e os alemães retiraram, os dois oficiais seguiram pela Harlech Road em direcção a Red House, na Rue du Bacquerot. A meio da estrada, perto de Harlech Castle, cruzaram-se com o tenente Cook, que vinha em sentido contrário.

“What ho, Afonso, my lad!“, cumprimentou o inglês, fazendo continência. Olhou para o Cenoura. “Como está, seu Pinto?“

“Viva Tim”, saudou Afonso. “Por aqui?“

“É mesmo, estou preparando um report para o meu boss.“ “Isto está mau, hem?“

“Right ho”, assentiu o tenente Cook sombriamente. “Not good, not bloody good.“

“Anda, vamos ali tomar um chazito.“

O inglês aceitou o convite e juntou-se aos dois portugueses. Caminharam pela Harlech Road, apanharam a Rue du Bacquerot junto a Red House e viraram à esquerda até Picantin Road, indo instalar-se em Picantin Post.

“Joaquim, chá para três”, disse Afonso à sua ordenança ao entrar no posto.

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O soldado foi aquecer a chaleira enquanto os três oficiais recém- chegados se instalavam dentro do abrigo do capitão, sentados em caixotes de munições. Cook retirou do bolso um cachimbo e um saquinho com o que parecia ser erva escura.

“Tabaco de Aleppo”, explicou, notando o olhar inquisitivo dos portu-gueses.

O tenente inglês colocou o tabaco no cachimbo e juntou-lhe o lume de um fósforo.

Afonso pigarreou.

“O que é que achas que os tipos estão a preparar? “ “ Quem? Os jerries?”

“Sim. “

O tenente inglês aspirou forte, com o fósforo aceso sobre o tabaco, e conseguiu puxar uma baforada de fumo. O aroma agradável do cachimbo perfumou o abrigo.

“Hard to say”, disse finalmente. Aspirou mais um pouco e largou uma nova nuvem de fumo. “Não há dúvidas de que os jerries vão atacar em breve. No doubts whatsoever. O

próprio Alto Comando já comenta isso abertamente. A questão é saber onde.“

“Achas que será aqui?“

“Hardly.“ Ergueu-se e aproximou-se do mapa que se encontrava na parede. “Temos informações fidedignas que apontam para algures no sector de Arras, mais para o sul.“ Indicou com o cachimbo o ponto que referenciava Arras no mapa. “Aqui.“

“Então por que é que estão a bombardear- nos desta forma todos os dias e a lançar estes raides? “

“O Alto Comando pensa que são manobras de diversão. Os jerries que-rem manter-nos no escuro, a tentarmos adivinhar qual o ponto que vai ser ata-cado. Por isso, reactivaram esta frente“ “Mas sabes o que é que nós já notá-mos?“, perguntou Afonso, remexendo-se desconfortavelmente sobre o caixote onde se encontrava sentado. “Os boches estão a regular o tiro sobre nós.“

Cook fez um ar intrigado.

“ Jhat do you mean “

“O fogo de artilharia não está a cair aleatoriamente. Antes pelo contrário, eles estão a disparar com muita precisão sobre determinados alvos. Por exemplo, andam a regular o tiro sobre estradas, cruzamentos e postos de comando. “ Estreitou os olhos. “Dá a impressão de que estão a ensaiar. Para que é que lhes serve bombardearem estradas, a não ser para as referenciarem de modo a que, se lançarem um grande ataque, possam impedir a circula ção de reforços?“

“Isso é curioso”, reflectiu Cook, sentando-se no seu caixote. “Confesso que me vou inclinando para a possibilidade de eles estarem tentando criar uma manobra de diversão, mas isso que você diz me deixa na dúvida.“ Aspirou o cachimbo e soltou mais uma lufada 379

de fumo aromático. “Sabe, dá a impressão de que esses raides todos estão servindo para os sujeitos testarem as vossas defesas. Admito que eles lancem uma operação por aqui, mas olhe que vai ser coisa limitada, será só para nos xingarem, entendeu?“ Afonso e Pinto entreolharam-se. O capitão ergueu-se, foi buscar uma pasta que guardava debaixo do catre e voltou a sentar-se no caixote. Abriu a pasta e exibiu uma resma de folhas dactilografadas em papel químico, eram cópias de documentos.

“Estás a ver isto?“, perguntou, levantando as folhas e agitando- as à frente do inglês.

“São os nossos relatórios diários. São elaborados pelos oficiais da Brigada do Minho e referem-se à actividade aqui em Fauquissart, o sector à nossa guarda.” Afonso pôs-se a folhear os documentos, lendo aqui e ali, mudando de folha, lendo mais um pouco, mudando novamente, e assim por diante. A certa altura parou numa folha, voltou para a folha anterior, de novo a seguinte, outra vez a anterior. “Cá está”, exclamou finalmente.