Apontou para o meio da página. “Olha para isto.“
“What? “
Afonso leu o documento.
“Este é o relatório do dia 7 de Março, há menos de duas semanas. Nessa noite saíram várias patrulhas para a terra de ninguém, e diz aqui o seguinte. “ Fez uma pausa para ler o texto. “Foi notado bastante ruído de viaturas à retaguarda das linhas inimigas.“ Ergueu a cabeça e fixou o inglês. “Ouviste? É a primeira vez que um relatório menciona a existência de ruído de viaturas na retaguarda alemã.“ Mudou para a folha seguinte. “Agora é o relatório de 8 de Março. “ Começou a ler o trecho que lhe interessava. “Ouviu-se o rodar de vagonetas à retaguarda da primeira linha inimiga.“ Sem levantar a cabeça, passou à folha seguinte. “Este é o relatório de 9 de Março “ Uma ligeira pausa. “Durante toda a noite foi ouvido o rodar de vagonetas à retaguarda da primeira linha inimiga “ Nova folha.
“Relatório de 12 de Março “ Hesitou, surpreendido. “Olha, falta-me o de 10 e o de 11.“ Procurou na resma, foi para trás e para a frente, mas não encontrou. Encolheu os ombros, resignado. “Não faz mal, vamos ver o de 12“ Curta pausa. “Todas as patrulhas informam que durante a noite houve grande movimento de viaturas à retaguarda das linhas inimigas e rodar de vagonetas. “ Folha seguinte. “Relatório de 13 de.“
“All right, all right, got it”, interrompeu Cook. “Já entendi que há grande movimento de viaturas nas linhas alemãs. “
Afonso ergueu a cabeça e fixou-lhe os olhos.
“Exactamente. Eles estão a movimentar tropas à nossa frente. “ “Pode ser muita coisa.“
“Pode ser. “
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“Pode ser que estejam movimentando forças para outros pontos da frente.“
“Pode ser. Mas também pode ser que estejam a movimentar forças de outros pontos para aqui. Aliás, tudo isto coincide com o aumento dos bombardeamentos e dos raides inimigos sobre as nossas linhas. Basta somar dois e dois“ Joaquim entrou no abrigo com a chaleira a ferver e copos de latão. Os dois oficiais portugueses serviram-se, mas o inglês preferiu concentrar-se no cachimbo. Cook aspirou forte, os lábios a envolverem o bocal, mas não saiu fumo nenhum.
“Damn!“, praguejou, inspeccionando o tabaco inserido no cachimbo. “Se apagou. “ Colocou o cachimbo de lado, irritado, e serviu-se de chá. “O problema é que esta actividade dos boches está a reflectir-se negativamente no moral das tropas”, disse Afonso.
“Eu notei”, devolveu Cook. “Enxerguei sentinelas cochi-lando nas trincheiras, munições espalhadas pelo chão, à toa, parapeitos por reparar. Isso não é bom, não.“ Afonso suspirou.
“Andamos aqui há demasiado tempo, demasiado. Olha, Tim, quando a nossa brigada entrou nas linhas, em Setembro, os boches tinham diante de nós a 219.a Divisão. Em Novembro, essa divisão foi rendida pela 50. a Em Janeiro saiu a 50.a e entrou a 44.a E este mês a 44. a foi descansar e temos agora pela frente a 81.a Divisão alemã. Ou seja, em seis meses eles colocaram ali quatro divisões diferentes, rodando os homens e deixando- os descansar. Pois nesses seis meses nós nunca descansámos e tivemos sempre de enfrentar tropas frescas. “ Bebeu um golo de chá. “Mesmo as vossas forças têm estado sempre a ser rendidas. À nossa esquerda, desde Setembro, estiveram sucessivamente a 38.a Divisão britânica, a 12.a Divisão e agora a 57.a Divisão. E à direita sucederam-se, no mesmo período, a 25.a Divisão, a 42.a Divisão e agora a 55.a Divisão. E nós sempre na mesma, parece que criámos raízes. Como é que queres que o moral das nossas tropas permaneça elevado Hã?”
Cook assentiu com a cabeça.
“Vocês têm de ser substituídos, não tenho dúvida nenhuma. Nem eu, nem o Alto Comando. Aliás, essa é a minha recomendação ao meu boss. “ Engoliu de assentada o resto do chá e ergueu-se. “Look, Afonso, tenho de ir andando para fazer meu report. Se eu tiver novidades, eu te digo, tá? “ Fez continência. “Cheerio, old chap. “ Começou por ser apenas um rumor, alguém que disse que alguém ouviu dizer, e a palavra foi circulando de boca em boca, esvoaçando pelas trincheiras, saltitando pelos abrigos. No posto de sinaleiros, porém, o boato transformou-se em certeza.
“Sim, meu capitão, os boches lançaram uma grande ofensiva”, confirmou o oficial de serviço aos sinais, um tenente.
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“Onde? “, quis saber Afonso.
“Entre Arras e St. Quentin, meu capitão. “
Afonso dirigiu-se ao mapa.
“Hum, isso é em frente de Amiens”, verificou, medindo as distâncias em relação a Armentières e em relação a Paris. “E como é que estão as coisas? “
“Acho que mal, meu capitão. Temos poucas informações, mas dizem que é o maior bombardeamento de sempre e que há uma maré de boches a avança-rem sobre os camones.“
“Os gajos avançaram até onde?“, quis saber Afonso, sempre com os olhos pregados ao mapa.
“Isso não sei, meu capitão.“
Afonso sentiu um peso a libertar-se-lhe dos ombros. Corria o dia 21 de Março e aquela era certamente a grande ofensiva da Primavera. Os alemães davam o tudo por tudo para quebrarem as linhas aliadas e, mais importante do que o resto, não escolheram o sector do rio Lys para o fazerem. O capitão quase sorriu de contentamento, o pior cenário, aquele que mais temera e que mais o consumira, não se confirmara. Tim tinha razão quando dizia ter informações seguras de que os alemães iriam antes avançar no sector de Arras.
Reforçando a convicção de que já não havia motivos para recear uma grande operação alemã contra o CEP, a actividade do inimigo sobre as posições portuguesas diminuiu drasticamente de intensidade nos dias que se seguiram ao grande ataque do dia 21. As patrulhas ainda continuaram a registar enorme movimento de viaturas na retaguarda das linhas alemãs, mas a partir do dia 25 instalou-se a tranquilidade.
Afonso suspirou de alívio.
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XVI
“O quê? Atacas com trunfo?“, perguntou Afonso, olhando surpreendido para o sete de copas deitado sobre a mesa de madeira tosca.
É a manilha. Vá, vê lá se cobres isso, anda, desafiou o tenente Pinto com ar de troça.
O capitão retirou uma carta do seu jogo e lançou-a para a mesa. Era o ás de copas.
O tenente sorriu.
“Estás a ver como tinhas o ás, hã? “
“Tinha, pois”, disse Afonso, recolhendo as cartas. “Tinha o ás e fiquei-te com a manilha. “
Pinto mirou o seu jogo. Sem levantar os olhos das cartas, voltou ao assunto que lhe interessava.
“Não percebo como é que eles planearam a ofensiva. “ Abanou a cabeça. “Não percebo. “
“Quem? Os boches? “, perguntou Afonso, sabendo muito bem que era sobre os alemães que o tenente falava. “Se calhar, os nossos homens também deram uma ajuda, afinal de contas não os íamos deixar vir por aí em passeio, não é? “
“Mesmo assim.“
Os dois oficiais jogavam às cartas ao princípio da tarde de 3 de Abril, sentados em sacos de terra junto a um dos postos de metralhadora de Picantin Post, a comentarem o fim da ofensiva alemã. O inimigo tinha chegado a tomar Ham e Bapaume, aproximando-se perigosamente de Amiens e Arras e lançando o pânico entre os aliados. Mas uma muralha improvisada, constituída inclusiva-mente por artilharia proveniente do sector do CEP, conseguiu travar o caminho aos alemães e a ofensiva esgotou-se.