Afonso preparava-se para lançar o três de copas e, desse modo, destrunfar o adversário quando um estafeta chegou de bicicleta e tirou um envelope do saco que levava a tiracolo. O capitão assinou o papel a acusar a recepção, pegou no envelope, rasgou a extremidade, tirou a folha que estava lá dentro e desdobrou-a. Era a Ordem R. O. /23.
Começou a lê-la e um sorriso aflorou-lhe aos lábios.
“O que é, Afonso?“, quis saber Pinto, a quem não passou despercebida a reacção do amigo.
“Cenoura, meu caro, cheira-me que em breve vamos passear a Paris.“ 383
“Estás a reinar comigo”, excitou-se o tenente, inclinando-se para a frente e estendendo a mão para pegar na ordem. “Mostra lá isso.“ O capitão deu uma gargalhada e atirou o braço para trás, mantendo a folha fora do alcance do amigo, que se esticava para a alcançar.
“Calma”, riu-se. “Calma. “ “És indecente. Mostra lá... “ Pinto voltou a sentar-se, embora relutantemente, e Afonso leu de novo a ordem.
“Então é assim”, disse, perante a expectativa do tenente. “Amanhã à noite, a 1.a Brigada sai da linha e vai descansar, sendo substituída pela 2.a Brigada. Depois de amanhã, a 3.a Brigada sai da linha e as que cá ficam esticam as suas forças para ocuparem o espaço que ela deixou. A 2. Divisão, reforçada pela 1.a Brigada, vai tomar conta de todo o sector, enquanto a 1.a Divisão irá finalmente repousar. E daqui a três dias passamos a ficar integrados no XI Corpo dos bifes“
O tenente hesitou.
“Não percebo por que é que estás assim tão contente”, desabafou, decep-cionado.
“Quem vai descansar é a 1.a Divisão, esses é que devem estar aos pulos. Nós ficamos aqui a amochar, qual é a piada?”
“A piada, meu caro Cenoura, é que isto significa que também nós iremos em breve descansar. Então não percebes que a 2.a Divisão, mesmo reforçada por uma brigada da 1.a Divisão, não pode ficar eternamente a aguentar um sector que antes era defendido por duas divisões? Os camones não vão nisso. Quando passarmos a integrar o XI Corpo, os gajos ficam a controlar-nos e, zás! substituem-nos logo. “ Fez um gesto rápido com a mão, a acompanhar o “zás”. “Eles sabem que estamos a dar as últimas. “ Foi a vez de Pinto sorrir.
“Sim, talvez tenhas razão”, admitiu. “E onde é que fica a nossa brigada?“
“Essa, meu caro Cenoura, é a cereja em cima do bolo. A 2.a Brigada vai para Ferme du Bois, a 6.a para Neuve Chapelle e a 5.a para Fauquissart. E a Brigada do Minho, meu caro, a nossa Brigada do Minho sai daqui de Fauquissart e fica gloriosamente de reserva!” O tenente deu uma entusiasmada palmada na coxa e riu-se. “Boa, boa! Boas decisões!
É assim mesmo! Adeus Brigada do Minho, viva a Barrigada do Minho.“ Uma hora depois, a Ordem R. O. /23 foi completada pela Ordem de Operações n.o 19, emitida pela Brigada do Minho com instruções detalhadas sobre o processo de rendição de forças. Este segundo documento, assinado pelo comandante interino da brigada, o tenente-coronel Mardel, estabelecia que a rendição ficaria completa em três dias, com Infantaria 8 a ser colocada em apoio e, logo a seguir, em reserva. O ambiente entre os minhotos desanuviou-se consideravelmente e Afonso mal podia conter a ansiedade por 384
voltar a ver Agnès. O dia seguinte, 4 de Abril, voltou a ser tranquilo. Os homens quase só falavam nas rendições que se anunciavam, pressentindo nelas o prelúdio de um descanso mais prolongado, quem sabe o regresso a casa. Viam-se soldados a sorrir, a brincar, o pesadelo aproximava-se do fim.
Na manhã do dia 5, o capitão foi chamado a Laventie para uma reunião com o tenente-coronel Mardel. Os comandantes dos quatro batalhões do Minho e os restantes comandantes de companhias juntaram-se na sala de conferências do quartel-general, havia muitos sorrisos, algumas gargalhadas no burburinho animado da conversa, os oficiais estavam descontraidamente agarrados aos cigarros, vivia-se um ambiente festivo, alegre, aliviado.
O suave rumor das vozes foi interrompido quando a porta se abriu e Mardel entrou na sala. O comandante interino da Brigada do Minho vinha com o rosto fechado e ar grave.
Cumprimentou- os com um gesto seco e mandou-os sentar. Os oficiais calaram-se e acomodaram-se em torno da grande mesa, subitamente inquietos, pressentiam problemas no olhar sombrio de Mardel.
“Oh diacho!“, comentou Afonso para Montalvão entre dentes. “Vem com ar de caso.“
Mardel aguardou que todos se instalassem. Afonso notou que ele tinha as sobrancelhas carregadas e um tique nervoso no nariz, não era bom augúrio.
“Meus senhores”, disse enfim o tenente- coronel, olhando lentamente em redor. “Na noite passada, os homens de Infantaria 7 pegaram em armas e revoltaram-se.” Um murmúrio tenso percorreu a mesa. O 7, de Leiria, pertencia à 2.a Brigada e todos sabiam que essa era a única brigada da 1. a Divisão que não iria descansar. Mardel deixou a notícia assentar.
“As praças do 7 não aceitaram ficar na linha enquanto as outras brigadas retiravam.
Segundo informações que agora me chegaram, os soldados recu-saram-se a marchar para Ferme du Bois, o sector que lhes estava destinado. Puseram-se aos tiros e impediram que Infantaria 23 e Infantaria 24 seguissem para as suas posições. “ O 23 e o 24 também pertenciam à 2. a Brigada. “De modo que, meus senhores, lamento ter de vos comunicar que recebi ordens de St. Venant no sentido de que a Brigada do Minho terá de se manter em Fauquissart.“
Os oficiais entreolharam-se, decepcionados. Todos pensaram no efeito que a notícia teria nos homens, já felizes por saírem da linha e serem colocados de reserva.
“Meu tenente-coronel, qual será a nossa disposição? “, perguntou o major Xavier da Costa, comandante de Infantaria 29, o outro batalhão de Braga.
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“Fica tudo como está. Nas primeiras linhas permanecerão Infantaria 8, à esquerda, e Infantaria 20, à direita. Atrás teremos Infantaria 29 e Infantaria 3. “
“E a 5 a Brigada vai para Ferme du Bois? “, quis saber o major Montalvão, comandante do 8.
“Afirmativo. Irá substituir a 2.a Brigada. Para além de nós, quem se trama é a 3.a Brigada, que ia descansar e já não vai, fica de reserva por causa da revolta na 2.a Brigada “ Como era de prever, os homens não receberam bem a notícia. Ouviram-se insultos e protestos, mas, no fundo, todos compreendiam que o pessoal da 1. a Divisão tinha mais direito ao descanso do que o da 2. a Divisão, uma vez que se encontrava havia mais tempo nas linhas.
A preocupação de Afonso adensou-se nessa noite. O capitão mandou o sargento Rosa e o seu pelotão efectuarem uma patrulha de reconhecimento e ficou na linha da frente, junto à Great Northern Trench, a aguardar o regresso dos homens. Ouviu várias rajadas de metralhadora enquanto a patrulha se encontrava na terra de ninguém, o que o fez recear pela segurança dos homens. Ao fim de duas horas, porém, a voz de Matias, com a senha do dia, devolveu-lhe a tranquilidade. O enorme cabo saltou de regresso à primeira linha, seguido de Abel, do sargento Rosa, de Vicente e de Baltazar.
“Então? Tudo calmo? “, perguntou Afonso ao sargento. “Meu capitão, eles tiveram as costureiras muito activas, foi um pouco agitado “
“Eu ouvi-as. E quanto ao resto? “
O sargento fez um trejeito com a boca e olhou de relance para o resto da patrulha, o olhar ensombrado de apreensão.
“Não sei, meu capitão. Não sei. “
“Não sabes o quê? “, admirou-se Afonso.