Rosa suspirou.
“Sabe, meu capitão, estão a passar-se coisas estranhas do outro lado... “
“Coisas estranhas? Que coisas estranhas? “
“A malta ouviu o som de motores na retaguarda dos gajos, eram camionetas e camiões a passarem uns atrás dos outros, um movimento danado. “ Rosa coçou a barba rala. “E ouvimos também um som diferente, assim catacá-catacá-catacá, parecia, sei lá, parecia um comboio. “
“Um comboio? “
Rosa olhou para Matias.
“Era ou não era um comboio? “, certificou-se o sargento.
Matias fez que sim com a cabeça, sem dizer nada, e os outros homens imitaram-no.
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“Um comboio? “, interrogou-se Afonso, verdadeiramente intrigado. Olhou para Rosa. “E foi tudo? “
“Não, houve mais”, indicou o sargento. “Vimos também muitos homens desarmados, lá ao fundo, e um grupo a consertar fios telefónicos. “ Afonso regressou pensativo e preocupado ao seu posto de Picantin. Foi falar com o tenente Pinto, comunicando-lhe as novidades, e decidiram ir ambos conversar com os homens que participaram nas patrulhas dos dias anteriores. Localizaram os soldados na manhã seguinte, 6 de Abril, e o que ouviram deixou-os verdadeiramente inquietos. As praças envolvidas nas acções de reco-nhecimento revelaram ter recomeçado no dia 2 a escutar o barulho de camiões a circular na retaguarda alemã. Os soldados falavam excitadamente num grande movimento de tropas inimigas e diziam ter visto homens a consertar fios telefó-nicos, a colocar tabuletas, a transportar madeira, a carregar sacos e caixotes, a montar crateras artificiais, a melhorar as vias de comunicação. Uma das praças afirmou mesmo ter observado um oficial alemão a estudar de binóculos as linhas portuguesas e a tomar notas, enquanto outras detectaram o uso de periscópios.
Imensamente alarmado, Afonso requisitou um cavalo e seguiu pela Harlech Road até Laventie. Apresentou-se no quartel-general da brigada e pediu para falar com o tenente-coronel Mardel. Após uma espera de apenas cinco minutos, o comandante interino da Brigada do Minho recebeu- o e Afonso comunicou-lhe todas as informações que tinha recolhido. Quando concluiu a exposição, Mardel sorriu.
“Você preocupa-se demasiado, caro capitão Brandão.“ Afonso corou, embaraçado.
“O senhor acha, meu comandante? “
“Então não hei-de achar? “
“Mas não pensa que estes sinais são preocupantes?“ “Afirmativo. Penso que são preocupantes, capitão, muito preocupantes até. “
O capitão ficou atrapalhado, sem entender a desconcertante reacção de Mardel.
“Mas então... “
“Os sinais são preocupantes, mas não para nós”, cortou o comandante. “São preocupantes é para os bifes. “
“Para os bifes?“, admirou-se Afonso. “Mas olhe que isto está tudo a passar-se à nossa frente, meu comandante, isto vai cair-nos em cima!”
“Negativo, capitão. Negativo. Vai cair em cima dos bifes. “ Afonso hesitou.
“Mas... como é que...“
“Tenha calma, capitão, tenha calma”, adiantou Mardel. Abriu uma gaveta da sua secretária e tirou umas folhas dactilografadas. “Está a ver isto? “ Exibiu-lhe a primeira 387
página e Afonso percebeu que era um documento redigido em inglês. “Isto é a Ordem de Rendição n.o 329, emitida esta manhã pelo general Haking, o comandante do XI Corpo britânico, e que me chegou há pouco aqui à brigada, há coisa de uns vinte minutos. E sabe o que é que diz? “ Mardel fixou os olhos em Afonso, procurando captar-lhe a expressão quando pronunciasse a frase seguinte. “A Ordem de Rendição n. 328 determina a retirada da frente de combate de todo o corpo português. “ Fez uma pausa dramática. “Todo. “ Afonso abriu a boca, tentando digerir o impacto da notícia. “Todo o corpo português? Vamos retirar? “
“Afirmativo, capitão Brandão. Vamos ser rendidos.“ “Mas ainda há dias.“
“O general Haking veio visitar as nossas linhas”, apressou-se Mardel a esclarecer.
“Ele viu o estado das tropas e concluiu que os homens não podem continuar na frente, já não estão em condições. De modo que, meu caro, saímos nós e entra a 50.a Divisão britânica. “
“Mas isso é magnífico, meu comandante. Magnífico! “ Afonso não se conteve de alegria. Efusivo, o capitão levantou-se da cadeira e, com entusiasmo, estendeu a mão para cumprimentar Mardel. O tenente-coronel devolveu o cumprimento e o sorriso.
“Daqui a dias, capitão, vamos a Paris, caramba, vamos às gajas! “ Afonso olhou pela janela e sentiu um aroma suave a encher-lhe os pul-mões, respirou aquela fragrância leve que lhe anunciava a liberdade há muito desejada, era um sentimento inexprimível e inefável, o coração dançava-lhe no peito, teve ganas de pular, de cantar, de correr, de sair porta fora e ir contar a Agnès a grande novidade, apeteceu-lhe abraçar Mardel e cheirar as flores, quis rir e chorar, dizer poemas e amar. As cores pareciam- lhe mais vivas, o ar mais perfumado, os sons mais melodiosos. Porém, a inesperada sombra de uma suspeita, furtiva e traiçoeira, toldou-lhe momentaneamente o espírito.
“Quando é que será a rendição?“, perguntou, desconfiado.
“Começamos a sair na noite de 9 de Abril e completamos a retirada na noite seguinte. “
“9 de Abril?”
“9 de Abril.“
Afonso contou mentalmente.
“Estamos a 6 de Abril.“ Sentiu os dedos com o polegar. Sete, oito, nove. “Três dias.
“ Descontraiu-se. “Faltam três dias.”
O capitão Afonso Brandão estava entretido a arrumar as coisas no abrigo de Picantin Post, dois dias depois, quando Joaquim assomou à porta.
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“Meu capitão, recebemos uma comunicação da brigada a dizer que o tenente Cook deseja falar consigo com urgência, pelo que se deve apresentar ainda hoje no quartel-general da 40. a Divisão britânica, em Fleurbaix. “
Afonso olhou para a sua ordenança, intrigado. Mas que raio de coisa teria Tim para lhe dizer com tanta urgência? Corria o dia 8 de Abril, tudo perma-necia calmo, na noite seguinte as forças portuguesas iriam ser rendidas, o que haveria assim de tão importante que não pudesse esperar mais vinte e quatro horas? O capitão ainda hesitou e admitiu a hipótese de ignorar o pedido, mas reflectiu melhor e considerou que aquele era um excelente pretexto para dar um salto à retaguarda e ir ver Agnès.
Requisitou um cavalo, na verdade uma égua, e abandonou Fauquissart. Quando chegou a Laventie, em vez de virar para norte, rumo a Fleurbaix, pros-seguiu para oeste.
Foi ter ao Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, desmontou, deixou a égua junto ao portão e mandou chamar a enfermeira Agnès Chevallier. A francesa correu para ele mal o viu. Tinha uma bata branca, um uniforme concebido para reprimir a feminilidade das enfermeiras, mas naquele corpo o uniforme era manifestamente incapaz de lhe retirar a sensualidade. Agnès abraçou-o com força, beijaram-se na face, no pescoço, nos lábios.
“Salut mon mignon”, disse ela finalmente, segurando-lhe o rosto com as duas mãos.
“Estás bem? Já vieste da guerra? “
“Ainda não, mas tenho uma novidade para te dar”, anunciou-lhe.
“Vraiment? Boa ou má? “
“Boa, boa”, sorriu ele, tranquilizando-a. “Amanhã saímos das trincheiras e vamos para um longo descanso na retaguarda. Para mim, a guerra acabou. C'est fini! Zut! “
“Oh la la!“, exclamou Agnès, os olhos verdes incendiados. Abraçou-o novamente com muita força. “Merci, merci, mon Dieu! Estou tão contente, não imaginas como estou contente. “