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Soprou-lhe beijos nos ouvidos, dos lábios rosados saíram-lhe carícias e sussurros, palavras suaves e melosas.

“Meu amor”, murmurou ele, os olhos cerrados, o corpo a senti-la comprimida a si.

“Estou tão aliviada!“, suspirou Agnès. “Ah, oui, que bom, terminou o pesadelo.“ Tiveram enorme dificuldade em despedir- se. Agnès acompanhou Afonso até ao portão, beijaram-se e abraçaram-se, sentiam-se radiantes. O capitão lá acabou por se encher de coragem e saltou para a sua montada. Afastou-se lenta e relutantemente. Ao fundo da rua, antes da curva, voltou-se uma derradeira vez para trás, viu Agnès pregada ao chão, as mãos cruzadas no coração, os cabelos castanhos-claros a reluzirem ao sol, trigueiros e 389

cristalinos, um sorriso feliz desenhado nos lábios. Ergueram ambos os braços e disseram adeus. Afonso esporeou a égua e desapareceu na curva.

Uma hora e meia depois, o capitão português apresentou-se no quartel-general da 40.

a Divisão britânica, em Fleurbaix, e pediu para falar com o tenente Timothy Cook. Tim apareceu pouco depois, descendo as escadas e indo ter com Afonso ao lobby.

“What ho, Afonso. Jolly good to see you! “

“Olá, Tim, estás bom? “

“Come on”, convidou Tim, conduzindo Afonso pelas escadas. “És mesmo um camone”, sorriu o português. “Então que coisa urgente é essa que me fez vir até aqui? “ O tenente inglês estacou num degrau.

“Temos informações... disturbing... como se diz?“

“Preocupantes.“

“Right ho, preocupantes. Temos informações preocupantes.“ Recomeçou a subir as escadas, os olhos fixos nos degraus. “Desde o dia 31 de Março que a nossa aviação tem registado um movimento geral de tropas e artilharia alemãs para norte, congestionando estradas e caminhos de ferro. No dia 1 de Abril, um único aeroplano contou, em apenas duas horas, cinquenta e cinco comboios a convergirem para o sector imediatamente diante das vossas posições. Essa observação foi confirmada nos dias seguintes por outros aeroplanos. “ Olhou de relance para o português. “Anteontem os aeroplanos verificaram que as estradas e linhas férreas mesmo à frente do sector português se encontravam engarrafadas com camiões e camionetas, e as nossas patrulhas viram os jerries a transportarem caixas e caixas de munições para as suas linhas de apoio. “

“Isso não é grande novidade para nós, Tim”, retorquiu Afonso. “Há já algum tempo que percebemos que os gajos estão a montar um grande ataque neste sector. Mas esse, se queres que te diga, já não é um problema nosso. É vosso. Amanhã à noite, meu amigo, saímos das linhas. “ Fez sinal de adeus com a mão direita. “ Goodbye “

“wrong, Afonso, esse é um problema vosso”, disse Tim, acentuando a palavra.

Chegaram ao segundo andar e meteram por um corredor. “É um problema vosso e é um grande problema. “

O capitão olhou-o, perturbado. “O que queres dizer com isso? “

“Quero dizer que os nossos especialistas acham que os preparativos terminaram e que os jerries vos vão atacar agora com toda a força que têm. “ Afonso sentiu o ar a faltar-lhe.

“Como... como é que eles podem prever isso? “, gaguejou. “Os boches podem só atacar daqui a alguns dias. Porquê justamente amanhã? “ 390

“Por causa do que se está a passar hoje. “

“E o que é que se está a passar hoje? “

“Nada.“

“Nada? Então qual é o problema? “

“O problema é que nada significa tudo. “

“Olha lá, estás parvo ou quê? O que queres tu dizer com isso?”Quero dizer que hoje não se passou nada nas linhas alemãs. Nada. “

“E então?”

Chegaram junto a uma porta e Tim imobilizou-se. “Afonso, quando estão decorrendo preparativos para um ataque, há sempre uma grande azáfama por detrás das linhas. No momento em que a azáfama pára, isso significa que os preparativos terminaram.“ Ergueu o indicador. “Eles estão prontos e vão atacar.“ O capitão voltou a respirar com dificuldade. Suspirou pesadamente e olhou para o amigo com ar de súplica.

“Está bem, terminaram os preparativos, já percebi. Mas o que é que nos garante que eles vão mesmo atacar amanhã? Por que não noutro dia?

Tim não respondeu imediatamente. Rodou a maçaneta da porta e abriu-a, convidando Afonso a entrar. Era uma sala larga, cheia de actividade, havia mesas encostadas às paredes com enor mes aparelhos em cima e homens sentados com auscultadores a tomarem notas. Tim aproximou-se de um deles e disse-lhe para vagar o lugar. O homem ergueu-se, fez continência e saiu, e o tenente fez sinal ao capitão para se sentar.

“Este é um sistema que nós temos que nos permite interceptar as comuni-cações telefónicas entre os chrries”, explicou, estendendo-lhe os auscultadores. “Se chamam Listening Sets. Como você fala alemão, estou certo de que achará essas conversas muito interessantes.“

Afonso sentou-se na cadeira e colocou os auscultadores. Os ouvidos encheram-se-lhe de sons estranhos, metálicos, apenas se escutava estática, estalidos e assobios. O capitão aguardou um minuto, o barulho era permanente. Fez sinal ao tenente Cook, como quem diz que não havia ali nada para ouvir, mas Tim pediu-lhe paciência com um gesto. Afonso não teve outro remédio senão permanecer com os auscultadores colocados. Passaram-se dez minutos, quinze, vinte, as pálpebras começaram a pesar-lhe, tinha sono, ia-se deixando embalar pelo som da estática. De repente, uma voz ressoou-lhe aos ouvidos.

“Hallo, Spandau”, chamou a voz.

“Jawohl”, devolveu uma outra.

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“Bleiben Sie am Apparat. “

“Vas ist das “

“Bleiben Sie am Apparat. Geben Sie mir das Kennwort. “

“Jawohl. “

Ouviu-se um sinal eléctrico.

“Hallo. Ist die verbindung in Ordnung? “

“Jawohl. “

Álso, jetzt gut aufpassen, auf keinen Fall von dem Aparat weggehen. “ Fez-se silêncio, mas Afonso permaneceu agarrado aos auscultadores, tenso, na expectativa, totalmente desperto, preso a cada palavra que fora pronunciada. O silêncio prolongou-se por cinco minutos, até que a primeira voz voltou à linha.

“Spandau. Passen Sie auf... Uhr 36. Ruben Sie Oberhalb an und geben Sie es weiter Passen Sie auf... 5 Uhr 36. Muss aber genau stimmen. “

Afonso retirou os auscultadores, horrorizado, os olhos vidrados de medo.

“Meu Deus! “, murmurou. “Eles estão a sincronizar os relógios.

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III

Tempestade

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I

Foi como se alguém tivesse ligado o interruptor. Num instante estava tudo calmo, sereno, silencioso. Ouviam-se rãs a coaxar junto aos charcos imundos e grilos a estridular nos descampados devastados. No momento seguinte, porém, a tempestade foi desencadeada com uma violência inaudita. Não foi primeiro um tiro, seguido de outro e de mais outro ainda. Foram os canhões em simultâneo a metralhar explosivos com uma intensidade brutal, numa cerrada barragem de fogo, como uma brusca maré que, sem aviso, galga terreno e invade a praia numa fúria destruidora, como uma orquestra que de repente rasga o silêncio e irrompe furiosamente numa infernal sinfonia.

Desde que regressara de Fleurbaix que o capitão Afonso Brandão tinha mergulhado num grande estado de ansiedade. Comunicou ao major Montalvão tudo o que soubera no quartel-general da 40.a Divisão britânica, mas o coman-dante de Infantaria 8 não se mostrou muito preocupado, provavelmente pensou que era mais um de muitos falsos alarmes dados por mais um oficial demasiado nervoso. Sentindo-se impotente para travar o rumo dos acontecimentos, Afonso resignou-se ao seu destino e regressou ao Picantin Post ainda com a íntima esperança de que os seus receios fossem realmente infundados. Não conseguiu dormir. Passou a noite irrequieto, a inspeccionar as trincheiras, a mandar limpar as armas e a verificar os paióis. Fixava por vezes os olhos nas linhas inimigas, tentando lobrigar movimento, procurando adivinhar o que ali se tramava, mas nada via, era como se ali estivesse erguido um muro negro, ameaçador e sinistro, insondável e impenetrável. Pelas quatro da manhã, já algo cansado, recolheu ao posto e sentou-se junto ao ninho de metralhadoras a beber um chá com dois homens de serviço à Vickers.