Apesar de já estar de sobreaviso, Afonso quase entornou a caneca de chá com o susto provocado por aquela enorme vaga de explosões que de súbito acendeu o horizonte e iluminou as sombras. Um fragor tumultuoso encheu a noite, o solo tremia como se fosse abalado por um tremendo terramoto, brutal e medonho, de uma intensidade alucinante, colérica, o ar vibrava e trepidava ao ponto de baralhar os olhos, a barulheira era tanta e tão cerrada que o capitão teve dificuldade em entender o que lhe gritava um dos homens da metralha-dora situada a uns meros dois metros de distância.
“... á... ra... go. “
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“ Como?”
“á... ra... go”
Afonso olhou para o soldado, perplexo. Não conseguia entender o que ele lhe gritava. Deu um passo e encostou o ouvido direito à boca da praça.
“Vá para o abrigo! “, berrava o homem.
O capitão fez que não com a cabeça. A intenção do soldado era boa, mas ali quem dava ordens era ele. Olhou para o relógio e verificou que eram quatro e um quarto da madrugada. Esticou a cabeça acima do monte de sacos de terra que protegia o ninho e viu o horizonte incendiado à frente e atrás de si, uma claridade de vermelho do inferno erguia-se das trincheiras enquanto clarões luminosos cruzavam o céu às centenas, aos milhares, todos a assobiarem, eram os projécteis incandescentes que os alemães lançavam como chuva sobre as linhas portuguesas, batendo inicialmente a área do comando, na retaguarda.
Os tiros de canhão eram tantos que não se ouvia nenhum isoladamente, antes formavam todos um urro único, surdo, brutal, sinistro. Pelo sentido das detona-ções, tornara-se evidente que o bombardeamento não era aleatório, mas diri-gido com precisão para as estradas, cruzamentos e pontos de comando. Clarões de fogo brilhavam no sector onde se situava Laventie, era provavelmente o quartel-general da brigada que ardia.
O major Gustavo Mascarenhas acordou em sobressalto e viu pedaços de tijolo, terra e caliça espalhados pela manta que o aquecia. Deu um salto na cama, surpreendido, os ouvidos ainda a zunir, e, já em pé, olhou para além da janela despedaçada. A noite acendera-se, iluminada por sucessivas explosões, a planície tremia sob uma barragem de fogo jamais vista pelas tropas portuguesas. O segundo comandante de Infantaria 13 despiu atabalhoadamente o pijama e colocou a farda num tropel. Uma vez vestido e armado, saiu do quarto e desceu à sala que servia de secretaria, para onde convergiram também os outros oficiais do batalhão transmontano.
“Meu major, já viu isto?“, perguntou-lhe o alferes Veiga, ainda a calçar uma bota.
“Nem no último dia os boches nos deixam em paz. Nem no último dia, caraças. “
“É”, assentiu Mascarenhas, bem-disposto. “Acho que já estão com sauda-des nossas e resolveram mandar-nos estes simpáticos postais de despedida.“ Todos se riram nervosamente, incluindo dois sargentos que executavam tarefas de amanuenses na secretaria do batalhão. O comando de Infantaria 13 encontrava-se instalado num edifício designado por Senechal Farm, em Lacou-ture, um posto que estava para Ferme du Bois como Laventie para Fauquissart.
Lá fora, o barulho das detonações era ensurdecedor. A casa tremia com a vibração das explosões, mas os oficiais mostravam-se calmos.
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“Sabem o que isto é? “, perguntou o capitão Ambrósio depois de mais um estremeção dos alicerces da casa.
“Uma retaliação pelo nosso bombardeamento de ontem?“, arriscou Veiga.
“Nem mais. Os gajos estão a dar-nos o troco.“
A artilharia portuguesa tinha, na véspera, bombardeado as posições alemãs em Bois du Biez, frente a Neuve Chapelle, e todos concordavam que estavam a assistir à resposta inimiga.
“Ó Veiga, vê lá se este bombardeamento é só em nossa honra ou se está também a atingir outros batalhões”, ordenou Mascarenhas.
O alferes era o sinaleiro de Infantaria 13 e foi ao telefone comunicar com a brigada.
Pegou no aparelho, colou- se ao bocal e colocou o auscultador junto ao ouvido esquerdo.
“Está lá? Está lá?“, chamou. Fez uma pausa. “Ouve bem? Está lá? Está lá?“ Tentou durante mais um minuto até se convencer de que a ligação não era possível. Olhou para Mascarenhas e abanou a cabeça. “Não há resposta, meu major. As granadas devem ter cortado os fios.“
“Pega aí em dois homens e vão lá fora reparar as linhas”, ordenou o major.
Veiga vestiu a gabardina, chamou duas praças, pegou numa caixa de ferramentas e saiu, mergulhando na noite turbulenta.
Havia já uma hora que o pelotão comandado pelo sargento Rosa se enco-lhia na linha da frente, vendo a trincheira da primeira linha a ser metodi-camente despedaçada pelas granadas e bombas que ululavam em aproximação. As primeiras salvas tinham sido dirigidas para a retaguarda, mas a artilharia alemã foi pouco a pouco encurtando o tiro, arrasando as posições portuguesas de trás para a frente como um rolo compressor, até se concentrar na primeira linha. Vicente tinha já sido atingido de raspão no ombro esquerdo por um estilhaço de bomba, quando se ouviu mais um zumbido e todos se encolheram, instintivamente perceberam que a granada ia mesmo cair por cima deles.
A explosão ocorreu em cheio na linha da frente, numa zona guarnecida por alguns homens do pelotão. Foi uma deflagração terrível, seguida de um sopro quente de ar e de uma chuva de destroços, pedras e poeira, era como se um bafo dos infernos por ali estivesse a passar. Matias Grande ergueu-se, os ouvidos a zumbirem, inspeccionou o corpo, confirmou que escapara ileso apesar de a farda ter sido rasgada nas mangas, e olhou para a cratera onde a granada tinha caído. No lugar dos seus camaradas encontrava-se apenas aquele sinistro buraco fumegante, era evidente que os corpos tinham sido cortados aos bocados ou mesmo se tinham evaporado pela acção do calor da explosão. O sargento Rosa 396
levantou-se com igual dificuldade, sentia-se tonto, e olhou para cada um dos homens do pelotão, contabilizando-os.
“Faltam três”, concluiu. Olhou de novo, buscou os rostos que não via e chamou-os.
“O Ribeiro?“ Procurou ainda. “Ribeiro! Ribeiro!“ Todos permane-ceram calados, o olhar pesado, tenso. “O Parente O Oliveira.“
Não houve resposta e o grupo presumiu, sem grande margem para dúvi-das, que os três estavam mortos. Na cratera viam-se alguns pedaços de carne solta e reconheciam-se mesmo dois dedos, um deles um polegar. Havia mais vestígios, mas ninguém os quis analisar. Outros dois homens encontravam-se feridos e gemiam encostados ao que restava do parapeito, uns sacos de terra já rasgados. Um dos feridos sangrava abundantemente da cabeça e o segundo tinha um estilhaço cravado na perna.