Percebendo que não podia operar sem dispor de qualquer informação, o capitão foi à porta do abrigo e chamou a sua ordenança.
“Joaquim! Joaquim!“
O soldado saiu do seu bunker e aproximou- se em passo rápido. “Sim, meu capitão?“
“Quero que vás à primeira linha ver o que se está a passar. Se vires algum boche, não quero cá tiroteios. Voltas a correr e informas-me, percebeste? “
“Sim, meu capitão.“
“Vai lá, anda.“
Afonso regressou ao abrigo, pensativo. Se o bombardeamento abrandara, raciocinou novamente, era certamente porque a infantaria alemã avançava. O nevoeiro só servia para ocultar a pro gressão das tropas.
“Cenoura”, disse, dirigindo-se ao tenente Pinto. “Vai dizer aos homens das metralhadoras que quero que reguem a terra de ninguém com rajadas sucessivas. Eles que disparem para lá, mesmo que não enxerguem nada. “
Matias agitava-se na trincheira, preocupado por não conseguir ver a terra de ninguém. Ouviam-se disparos de metralhadora e espingardas, mas nada se podia observar, 400
eram apenas sons que vinham de algures. O problema é que não era só aquele nevoeiro denso que lhe toldava a visão. Era também a posição onde o pelotão se encontrava. A Burlington Arcade podia até ser mais segura do que a primeira linha durante um bombardeamento pesado, mas, devido ao seu enfilamento perpendicular, não constituía certamente o melhor sítio para observar qualquer eventual avanço da infantaria inimiga.
Não era por acaso, de resto, que a Burlington não fora concebida como trincheira de combate, mas apenas de comunicação.
“Meu sargento”, chamou para trás.
Já não havia necessidade de gritar, as granadas continuavam a estourar por ali, mas sem a intensidade das três primeiras horas.
“O que é, Matias?”
“A infantaria boche deve estar a avançar a qualquer momento, se é que não avançou já”, indicou o cabo. “Aqui nesta trincha não os conseguimos topar. Ouvimos os tiros, mas não vemos nada. Temos de nos mudar.“
“E onde queres ir tu, Matias?“, admirou-se o sargento Rosa.
“Não vês que a primeira linha ficou inutilizada? Aliás, já nem há primeira linha. “
“Eu sei, meu sargento. O melhor é irmos para a linha B.“
“O capitão Brandão mandou resistir até ao fim.“
“Sim, meu sargento”, assentiu Matias. “Mas aqui não resistimos nada. Se os boches aparecerem, do ponto que ocupamos só os topamos quando eles nos caírem em cima.
Além do mais, como a artilharia boche já abrandou o tiro sobre esta zona, é muito possível até que eles nos estejam a tentar envolver, apanhando-nos por trás. É por isso que temos de ir para a linha B. Lá resistimos melhor.“
“Ele tem razão, meu sargento”, concordou Baltazar, deitado atrás de Matias.
Rosa ficou a matutar no assunto. Ergueu a cabeça, olhou para um lado e para outro, constatou que, de facto, não conseguia ver o que se passava nem à direita nem à esquerda e voltou-se para o pelotão.
“Está bem”, exclamou finalmente. “Vamos lá.“
Eram oito da manhã quando o pelotão do sargento Rosa abandonou a sua posição na Burlington Arcade, junto à linha da frente, e recuou por aquela trincheira de comunicação rumo à linha B. Os homens avançaram em passo rápido, sempre curvados, e foram dar com a Rue Tilleloy, onde se formava a segunda linha. Continuaram a correr para atravessarem a grande estrada, mas, quando iam a meio, sentiram o ar a ser cortado por projécteis rasantes, estaca-ram surpreendidos, ouviram o matraquear de uma metralhadora 401
à direita, desorientaram-se, um deles caiu no chão com um som seco, foi atingido, Rosa saltou em frente e atirou-se para a berma, o resto do pelotão recuou e ficou do outro lado.
“Boches!“, berrou Matias, ofegante, cosido ao chão. “Estão boches aqui na Tilleloy!“ Os homens ergueram a cabeça e observaram o companheiro que tombara em plena estrada, atingido pela metralhadora inimiga. Era Abel, o rapaz magri-nho e calado que viera de Gondizalves. O ferimento era sério, a sua situação parecia desesperada. O Lingrinhas agarrava-se ao pescoço, donde saíam, em pavorosas golfadas, esguichos de sangue escuro, as mãos pintadas de vermelho a tentarem estancar a hemorragia, o buraco na garganta a emitir horríveis ruídos de ar a tentar entrar e sair. Abel asfixiava em silêncio, incapaz de proferir um gemido que fosse, e ninguém o podia ajudar. Vicente ergueu-se para saltar para a estrada e ir socorrer o amigo, a metralhadora abriu fogo e Matias placou-o pelas pernas e atirou-o ao chão.
“Deixa-me!“, debateu-se Vicente, tentando libertar-se. “Deixa-m'ajudá-lo!“
“Está quieto, Manápulas!“, rugiu o cabo. “Não o podes ajudar. E, se fores para ali, eles matam-te também.“
Matias era muito mais forte do que o companheiro e manteve-o firme-mente preso nos seus enormes braços. Vicente percebeu que não conseguiria libertar-se, esticou a mão esquerda em direcção de Abel, que ainda se contorcia em plena Tilleloy, e começou a chorar, desesperado, impotente. Já tinha visto outros camaradas morrerem, mas este era diferente, fazia parte do seu mais restrito núcleo de amigos do pelotão. O Lingrinhas torcia-se agora em convul-sões, era evidente que vivia os seus últimos instantes, e todos os homens, à excepção de Matias, voltaram a cara para o lado ou fecharam os olhos, não queriam assistir à morte do rapaz. Apenas o cabo viu o extertor final, as pernas a tremerem num violento espasmo, os olhos a revirarem- se para o branco, o corpo a estremecer na derradeira convulsão, um suspiro cavado e tenebroso, a carne a imobilizar-se finalmente, o sangue a estancar e a deixar de jorrar pela garganta.
Os homens do pelotão permaneceram um longo minuto calados. Vicente tinha recuperado o controlo das emoções e manteve-se igualmente silencioso. Mas os homens sabiam que se encontravam numa situação bem mais difícil do que tinham antecipado.
Matias interrogava-se sobre o que estava uma metralhadora alemã a fazer na Rue Tilleloy, no sector de Fleurbaix, à esquerda das linhas portuguesas, uma área que era suposto estar guarnecida pelas tropas britânicas da 40.a Divisão.
“Meu sargento”, chamou.
“O que é?“, respondeu a voz do outro lado da Tilleloy.
“Não vê os camones?“
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“Não.“
Matias ficou pensativo.
“Devem ter cavado”, cogitou em voz alta para Rosa. “Os camones cava-ram e os boches estão a entrar por ali“ Fez uma pausa para prosseguir o seu raciocínio. “Isto significa que eles nos começaram a flanquear, meu sargento, estão a dar a volta para nos apanharem por trás. Estamos quilhados! “
“Temos de recuar mais”, disse o sargento. “O que sugeres? “ Matias olhou para o pelotão. Vicente e Baltazar permaneciam deitados atrás de si, muito imóveis. O cabo rastejou até uma árvore calcinada, a dez metros de distância, ergueu a cabeça, devagar, e espreitou pela berma do tronco para a sua direita. Viu homens lá ao fundo. Olhou com atenção para os capacetes e confirmou que eram alemães. Baixou-se e rastejou de volta para junto dos homens.
“Os boches estão mesmo ali ao fundo, a vigiar a Tilleloy”, disse, suficientemente alto para Rosa o ouvir. “Vamos fazer assim. “ Fez uma pausa para recuperar o fôlego. “Eu já os topei e vou abrir fogo sobre os gajos aqui com a minha Luisa. Quando eu mandar as rajadas, vocês saltam para o outro lado”, ordenou, falando agora para os dois soldados ao seu lado. “Depois, é a vez de vocês os três dispararem sobre os boches e de eu saltar.