Afonso completou dez anos em 1900 e deixou a escola. Achava-se já um homenzinho, pelo que decidiu ir trabalhar para a serração com os irmãos. Era um armazém grande e, como o rapaz mostrava uma compleição franzina devido à sua tenra idade, foi poupado inicialmente aos trabalhos mais pesados. O senhor Guerreiro, que chefiava o armazém, colocou-o inicialmente nas limpe-zas e como moço de recados. Ao contrário do que se passava com os irmãos, o trabalho de Afonso não era pago em dinheiro, mas em géneros. Davam-lhe almoço e lanche, aliviando as magras despesas lá em casa. Ao fim de um ano, contudo começou a envolver-se em trabalhos mais pesados, cortando troncos e operando serrotes de modo a preparar a madeira para confecção de mobiliário. Admirava-se com a habilidade dos carpinteiros em darem forma aos troncos toscamente cortados a machado, mas esse era o único atractivo que descobriu na serração. O trabalho revelou-se pesado e Afonso não tinha jeito de mãos, não lhe restando assim espaço de progressão naquele emprego.
Um anúncio na vitrina da Casa Pereira, em pleno centro de Rio Maior, despertou a atenção de Afonso quando um dia por ali passou a caminho da Feira dos Passos. A Casa Pereira era um estabelecimento comercial onde se vendiam tecidos, fazendas, botões, linhas e quejandos e procurava um rapaz para pequenos trabalhos. Afonso aprumou-se, mandou os irmãos dizer ao senhor Guerreiro que nesse dia não podia ir trabalhar porque tinha febre e apresentou-se na loja.
“Quero trabalhar” anunciou.
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A dona da Casa Pereira levantou os olhos das facturas que contabilizava e mirou aquele rapaz magro e compenetrado que se perfilava diante da sua secretária.
“Sabes ler? “
“Sei, sim senhora. O professor Ferreira ensinou-me. “
“E fazer contas? “
“Também, minha senhora. “
Ela estudou-o com o olhar e descobriu- lhe os joelhos arranhados, fios de crostas a rasgarem a pele. Seria um arruaceiro?
“Olha lá, rapaz”, disse, apontando-lhe para os joelhos esfolados. “Onde arranjaste isso? “
“A jogar à bola“
“Jogas à bola?“
“Às vezes. Gosto de dar uns kikes e fazer goal.“ A proprietária, dona Isilda Pereira, achou-lhe graça e contratou-o. Corria o ano de 1902 quando Afonso, com doze anos, entrou na Casa Pereira e foi acolhido debaixo da asa protectora de dona Isilda, que lhe passou a dar almoço, lanche e roupas novas, e ainda um punhado de réis para levar para casa. Foi aqui que o pequeno pela primeira vez saboreou coscorões, verdadeiras delícias fritas que a proprietária confeccionava segundo uma velha receita de família, entoando o tradicional “Deus t'alevede, Deus t'acrescente em honra de São Vicente” sempre que acabava de bater a massa, o que o divertia imenso. Foi também aí que experi-mentou usar sapatos, uma exigência da patroa, que considerava desaconse-lhável a loja funcionar com um empregado descalço.
Dona Isilda tinha enviuvado cedo e ficara sozinha a educar uma filha. Carolina, menina ruiva com a cara pintada de sardas, tinha onze anos e era atrevida e arisca. Não foi preciso esperar muito tempo para que a catraia começasse a brincar com Afonso, afinal apenas um ano os separava. O rapaz reagiu inicialmente com reserva, não estava habituado a relacionar-se com raparigas, elas não frequentavam a sua escola e nunca falara com uma da sua idade, limitava-se a mirá-las à distância na missa de domingo. Afonso começou, por isso, por se retrair, tímido e desconcertado, mas ela insistiu e ele, ardendo de curiosidade, foi-se deixando aproximar, devagar, como quem não quer a coisa. Carolina ajudava-o nas suas tarefas na loja e Afonso correspondia nos tempos livres, prestando-se a fazer o papel de marido ou de médico, consoante as brincadeiras. Os jogos aos papás e às mamãs substituíram temporariamente os jogos de football e conduziram-nos a um namorico ainda inocente, ambos trocando olhares e bilhetes cúmplices por detrás do balcão ou no armazém da Casa Pereira. Beijaram-se uma vez às escuras, num canto esconso da loja, por 42
baixo das escadas, mas quando saíram cá para fora sentiram-se envergonhados, mal se conseguiram encarar, aquilo era pecado mortal. Daí para a frente preferiam jogar na ambiguidade das suas brincadeiras, eram casados a fingir, mas intimamente fantasiavam que era tudo a sério.
Dona Isilda era uma senhora educada, até falava francês e entendia algum do latim das missas, mas revelava-se igualmente atenta às coisas da vida; mulher experiente, apercebeu-se da aproximação entre a filha e o jovem empre-gado. Simpatizava com Afonso, não havia dúvida, mas achou pouca graça às brincadeiras entre os dois e decidiu tomar medidas, não fosse o diabo tecê-las e Carolina, criatura comprovadamente teimosa como o falecido pai, insistir naquele catraio. Não eram raros naquela época os casamentos na adolescência, a história dos pais de Afonso o comprovava, e dona Isilda não queria um genro pobretanas e muito menos ver-se tão cedo com um neto nos braços.
A opção mais simples seria a de despedir sumariamente o rapaz, mas dona Isilda conhecia a filha e o seu irritante gosto pelo fruto proibido e, mulher avisada e conhecedora destas coisas da natureza humana, suspeitou de que, numa terra pequena como Rio Maior, não seria difícil os dois continuarem a encontrar-se às escondidas, avia abundantes histórias de namoros interditos que acabavam no enlace indesejado. Eram, portanto, necessárias medidas mais drásticas, embora a subtileza fosse igualmente essencial.
Depois de muito pensar, a mãe de Carolina pôs os pés ao caminho e foi falar com os pais de Afonso. Apresentou-se na
Carrachana perante uma embaraçada senhora Mariana, nunca na vida entrara naquela humilde casa uma senhora tão distinta. A anfitriã desfez-se em gentilezas, correndo para aqui, fugindo para ali, indo buscar isto e aquilo, saltando até às traseiras para gritar pelo marido, naquelas quatro paredes foi um reboliço que só visto.
“Ai, minha senhora, estou tão nervosa”, gemeu Mariana, esfregando as mãos molhadas no avental imundo, os dedos gordos nervosamente irrequietos. “Valha-me Deus, podia ao menos ter avisado. “ Olhou em redor, assustada com o que dona Isilda poderia pensar sobre o aspecto da sala. “Uma senhora tão fina! Jesus, a vir aqui à nossa casinha... a gente até fica assim a modos que sem jeito, não é?“
“Oh, não se preocupe, não se preocupe, isto está muito bem.
Isilda esforçou-se por ignorar o cheiro a estrume que impestava aquele miserável pardieiro e procurou manter um semblante tranquilo, sereno, plácido. Mas, ao ver o buraco donde era Afonso oriundo, mais cimentou a sua determinação em afastar o rapaz da filha, estava totalmente fora de questão que o namorico prosseguisse, desejava para Carolina bem 43
mais do que aquilo. Ao mesmo tempo, tinha a consciência de que teria de jogar bem as suas cartas, a diplomacia inteligente seria bem mais produtiva do que a força bruta.