Compreendido? “
Os homens assentiram com a cabeça e Rosa confirmou de viva voz. Matias fez sinal aos companheiros para se aprontarem, agarrou a Lewis com firmeza, respirou fundo, ergueu-se e abriu fogo.
Acto contínuo, Vicente e Baltazar levantaram-se e atiraram-se para o outro lado da estrada. Os alemães responderam e o cabo baixou-se de imediato. Aguardou um instante.
“Está tudo bem? “
“Sim”, confirmou Rosa. “Aguenta um pouco, vamos agora aprontar-nos nós. Ao meu sinal, abrimos fogo e saltas tu “ Fez-se um compasso de espera para os três homens prepararem as Lee- Enfield. Mais uns instantes e ouviu-se a voz do sargento. “Agora! “ Os três homens ergueram-se e dispararam as espingardas. Ao mesmo tempo, Matias atirou-se para o outro lado da Tilleloy e rebolou pela berma, enquanto a Maxim alemã voltava a bater a estrada, os repicos da rajada a levantarem nuvens de terra e lama.
“Estás fino? “, perguntou Rosa, novamente agachado. “Sim, eu... “ Um ruído por trás deixou-os momentaneamente paralisados. Voltaram as armas para a Picadilly Trench, a trincheira de comunicação que prolongava a Burlington Arcade, e prepararam-se para carregar nos gatilhos, mas o azul da farda do homem que viram emergir da linha fê-los suspender os disparos. O recém-chegado era português.
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“Então, malta? “, saudou o desconhecido.
Os elementos do pelotão suspiraram.
“Ó homem, íamos dar-te cabo do canastro, caraças”, exclamou o sargento Rosa. “O
que estás aqui a fazer? “
“O capitão Brandão mandou-me ver o que se passa na linha da frente”, disse o soldado, erguendo-se para prosseguir. “Tenho de ir até lá. “
“Como é que te chamas? “
“Joaquim. “
“Pois bem, Joaquim, a linha da frente é aqui.“ “Aqui? Mas isto é a Tilleloy. Eu tenho é de... “
“Joaquim”, cortou Rosa. “A primeira linha já não existe, está arrasada. Percebes? Há boches ali à esquerda com uma costureira pronta a limpar-nos o sebo. Por isso, já não podes avançar, esta é agora a linha da frente. Entendeste?“ Joaquim olhou para os quatro homens com desconfiança. Mas o seu ar sério e cansado, mais o corpo estendido em plena estra-da, convenceram-no de que, por incrível que parecesse, estavam a falar verdade. Os alemães tinham mesmo chegado à Rue Tilleloy.
“Os boches estão aqui? “
“Sim”, confirmou Matias, apontando para a esquerda. “Ali ao fundo. “
“Vocês viram-nos? “
“Nós vimo-los, disparámos sobre eles, eles dispararam sobre nós e mataram-nos um marada. “
Joaquim deu meia-volta.
“Então é melhor acompanharem-me até ao Picantin Post. O capitão Brandão vai querer falar convosco “
À mesma hora, oito da manhã, o alferes Viegas entrou na casa de Senechal Farm com um soldado atrás de si. O homem vinha ofegante, coberto de pó e lama, e, pormenor muito notado pelos oficiais de Infantaria 13, encontrava-se desarmado.
“Meu major”, disse Viegas. “Apanhei este desertor a correr pela estrada, feita galinha tonta. Traz novidades da frente. “
O major Mascarenhas aproximou-se do homem, que parecia absoluta-mente aterrorizado.
“Identificação “
“Sou o soldado Fonseca, meu major” Arfou. “Praça n.o 173, contramestre de corneteiros de Infantaria 17 “
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“Infantaria 17?“, repetiu Mascarenhas, reconstituindo mentalmente a dis-posição das forças no terreno. “Se não me engano, devias estar em Ferme du Bois. Creio que o teu comando é no Lansdowne Post. O que é que andas aqui a fazer, hã? Quem é que te autorizou a ausentares-te do teu posto? “
O homem olhou-o com horror.
“Mas, meu major... não está a compreender”, exclamou de forma ataba-lhoada. “Os boches... os boches entraram de roldão... um mar deles, pareciam formigas... prenderam tudo, o comando do 17, o comando do 4, mais os homens todos... está tudo a cavar, tudo a cavar... o cavanço é geral, meu major... eles vêm aí, temos de fugir. “
“Mas tu estás a reinar comigo ou quê?“, perguntou Mascarenhas com ar duro. “Quais boches, qual quê! Tu és um desertor, abandonaste os teus cama-radas, é o que é!“
“Meu major... por favor.“ O homem gaguejava, arquejava, revirava os olhos, as palavras saíam-lhe num tropel, hesitantes e trapalhonas, mostrava-se agitado e parecia à beira de um ataque de nervos. “Temos de cavar... por favor, deixe-me cavar daqui!“ Uma sentinela do 13 entrou na sala.
“Meu major, apareceram mais desertores na estrada, vêm a fugir das primeiras linhas.
O que fazemos? “
Mascarenhas hesitou. Olhou para o contramestre dos corneteiros do 17, percebeu que a história por ele contada era verdadeira, só podia ser verdadeira dado o seu estado de nervos e o aparecimento de mais fugitivos, e voltou-se para a sentinela.
“Arrebanhem-me esses desertores todos e recolham a informação que eles têm para dar”, ordenou. “Depois, preparem-nos para resistirem. Está na hora de esses tipos deixarem de cavar e irem combater” Apontou para o soldado Fonseca. “E levem-me também este gajo daqui “
O major fez sinal aos oficiais do seu estado-maior para se aproximarem e foi buscar um mapa, que estendeu sobre uma das mesas da sala. Pegou num lápis e assinalou a situação no terreno antes do ataque.
“Portanto, na linha de Ferme du Bois estava o 17 em Lansdowne Post e o 10 em Path Post, com o 4, atrás, em Chavattes Post”, disse, escrevendo os números dos respectivos batalhões no ponto por eles supostamente guarnecido. “Ora, a acreditar naquele idiota, e tudo indica que ele está mesmo a falar verdade, o 17 e o 4 deixaram de combater. Não temos notícias do 10, mas, se o 4, que está atrás, foi aniquilado, o 10
também já deve encontrar-se fora de combate “ Assinalou cruzes sobre Lansdowne, Path e Chavatte, assumindo que não podia contar com essas forças.
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Ergueu a cabeça e fitou os seus oficiais. “Isso significa que somos nós agora a linha da frente e que os boches vêm aí“ Fez-se silêncio. “Alguma sugestão? “ O capitão Ambrósio pigarreou.
“Meu major, não deveríamos aplicar o plano de defesa? “
“Sim”, concordou Mascarenhas. “O problema é que não temos plano de defesa.
Pedimo-lo ontem ao major Passos e Souza e ele disse que ia tratar do assunto, mas não nos comunicou mais nada. Portanto, não há plano e temos de ser nós a inventar um. “ Olhou de novo para o mapa e suspirou. “Só vejo um caminho. Temos de avançar no terreno e estabelecer contacto com o inimigo. “ Voltou a mirar os seus oficiais. “Voluntários? “
“Eu, meu major”, exclamou de imediato o tenente Alcídio de Almeida, comandante da segunda companhia.
“Muito bem, Alcídio”, disse Mascarenhas em tom de aprovação. Voltou com o lápis ao mapa. “A segunda companhia vai ocupar aqui a trincheira 5 e enviar patrulhas para explorar o terreno em frente. A missão dessas patrulhas é localizarem o inimigo, ligarem-se a quaisquer homens nossos que venham a encontrar e resistirem até ao limite.“ O major ergueu a cabeça e mirou o alferes Martins, ajudante do batalhão. “Aliás, o mesmo devem fazer a primeira e a terceira companhias. Por isso, senhor alferes, transmita estas ordens ao tenente Gonçalves e ao capitão Magno.“ Endireitou-se, dando sinal de que a reunião estava concluída. “Meus senhores, vamos resistir até virem os reforços. Está previsto que os ingleses nos rendam esta tarde. Uma hora, uns dez minutos apenas, podem fazer a diferença. Temos de esperar por eles para depois, e de forma compacta, empurrarmos os boches lá para o inferno. Por isso, meus caros, conto convosco para aguentarem o impossível, aguentarem até os ingleses chegarem. Boa sorte a todos.“ Os oficiais destroçaram. Mascarenhas acompanhou o tenente Alcídio até junto dos homens da segunda companhia e constatou que as munições eram um ponto crítico.