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“A pouca água que temos tem de ser racionada e está destinada unicamente a dar de beber aos homens”, disse.

“Mas, meu capitão, com'é qu'arrefecemos a costureira? Ela tá a escaldar e, se continuar assim, o cano vai derreter. “

Afonso fixou-lhe os olhos.

“Olha lá, não tens vontade de mijar? “

O rosto de Vicente congelou-se numa expressão interrogativa, mas em dois segundos abriu-se-lhe um sorriso, tinha compreendido. O Manápulas foi buscar uma vasilha, puxou a Vickers, retirando-a da seteira aberta entre os sacos de terra, colocou a vasilha por baixo da parte dianteira da manga, desen-roscou a tampa e do interior da manga começou a jorrar água a ferver para a vasilha. Quando a água deixou de correr, recolocou a tampa enquanto Afonso desenroscava outra tampa, esta situada na parte superior da manga, logo a seguir à mira da arma. Os dois homens, aos quais se juntou Sérgio, ergueram-se, mantendo o tronco curvado para não se exporem ao fogo inimigo, abriram as braguilhas e fizeram 412

pontaria à abertura situada no topo da manga. Quando a urina tocou no ferro escaldante produziu-se de imediato um ffzzzz de arrefe-cimento, parte do líquido evaporou-se, a outra parte acumulou-se na manga cilíndrica. Cada um esvaziou a bexiga no interior da manga e Afonso foi chamar mais homens para urinarem na Vickers. Quando a manga ficou cheia, Sérgio enroscou a tampa e Vicente experimentou com os dedos a temperatura do metal.

“Ainda tá quente, mas tá muito melhor”, disse. “Aguenta mais uns cinco minutos, dez no máximo“

“Quando estiver outra vez a ferver, voltas a esvaziar a manga e metes-lhe a água da vasilha”, instruiu-o Afonso, consultando o relógio. Eram dez da manhã.

“Sim”, concordou Vicente. “C'o briol que p'rá'qui vai, por ess'altura a água já deve ter arrefecido. “

Afonso espreitou pela seteira para as posições inimigas. “De qualquer modo, tenta poupar munições, hã? Não te esqueças.

O capitão retirou-se, deixando Vicente e Sérgio a operar a Vickers. O Manápulas recolocou a metralhadora na seteira, viu mais alemães a correrem lá ao fundo, largou uma rajada e outra logo a seguir. Alguns alemães tombaram, os restantes foram procurar refúgio. Vicente girou a Vickers para a esquerda e para a direita, procurando novos alvos.

Pelo canto do olho sentiu um objecto metálico a cair-lhe ao lado, parecia uma garrafa.

Sérgio ergueu-se de repente, como se tivesse sido impelido por uma mola.

“Granada! “, gritou.

O ninho da Vickers explodiu.

Os sons da guerra ecoavam intensos à volta de Senechal Farm. Eram já onze da manhã e o major Mascarenhas mostrava-se surpreendido com a persistência do nevoeiro.

Começou a suspeitar de que todo aquele fumo não resultava de uma mera neblina matinal, mas era também fruto do emprego de granadas de fumo destinadas a ocultarem o movimento da infantaria atacante. Colocou os binóculos nos olhos e inspeccionou o nevoeiro. À esquerda apenas se via vapor branco e à frente também. Girou os binóculos para a direita e, por entre as nuvens baixas, observou vultos a esgueirarem-se pelo terreno.

Baixou os binóculos e mirou a olho nu aquele sector. Havia ali, de facto, alguns pontos minúsculos a movimentarem-se. Presumiu que se trataria de uma das companhias que enviara para estabelecerem contacto com o inimigo, embora não pudesse ter a certeza.

Olhou de novo pelos binóculos, mas a imagem tremia em excesso, devido aos ligeiros movimentos das suas mãos, tremendamente amplificados pelas lentes. Para estabilizar os binóculos assentou-os sobre uma pedra e acocorou-se atrás dela, espreitando pelos óculos.

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A imagem apresen-tava-se agora muito melhor e Mascarenhas distinguiu com clareza o contorno dos capacetes. Eram alemães.

“Maciel!“, gritou, chamando o alferes que o acompanhava. O homem aproximou-se a correr.

“Sim, meu major? “

“Estás a ver aqueles pontos ali?“, perguntou Mascarenhas, apontando para a direita.

O alferes Maciel virou-se na direcção indicada, esticou a cabeça para a frente, estreitou os olhos e, após uma breve hesitação, assentiu.

“Estou a vê-los, meu major”

“São boches. Façam fogo nutrido sobre aquele sector, mas depois tenham cuidado porque há também para ali homens nossos. 547

As metralhadoras e as espingardas portuguesas abriram uma barreira de fogo sobre a direita, varrendo a área onde os alemães tinham sido avistados. O inimigo respondeu ao fogo com fogo, generalizando-se o tiroteio à direita de Senechal Farm. Os defensores distribuíram as tarefas, com os ciclistas ingleses a defenderem a esquerda, que permanecia calma, Infantaria 13 a vigiar o centro e Infantaria 15 na direita. Uma hora depois foram avistados alemães igualmente à esquerda e as tropas portuguesas varreram o sector com duas metralhadoras e muitas espingardas. Vários soldados inimigos tombaram no solo, apanhados pela saraivada, mas Mascarenhas não tinha ilusões. Os alemães apareciam à esquerda e à direita, em breve Senechal Farm ficaria cercada. Vendo-se momentaneamente impedidos de progredirem, os atacantes fixaram-se no terreno. Depressa Mascarenhas ficou apreensivo, não apenas por causa da fragilidade da sua posição, como sobretudo devido ao crescente isolamento das companhias que enviara para fazerem frente ao inimigo.

“Maciel! “, voltou a chamar.

“Sim, meu major? “

“Manda-me ordenanças com cunhetes para as companhias da frente. “ O alferes Maciel foi executar a ordem e Mascarenhas voltou aos binóculos.

O posto de Picantin já só tinha um punhado de homens a resistirem. Afonso contou-os, eram uns vinte e as três Vickers estavam fora de serviço, uma destruída pela granada que matara Vicente Manápulas e Sérgio, outra bloqueara e a terceira tinha o cano derretido.

Como metralhadoras, apenas funcionavam duas Lewis, uma delas operada por Matias Grande.

“Meu capitão”, gritou o cabo. “Já só tenho um disco” A Lewis era alimen-tada por um disco com noventa e sete balas. A guarnição de Picantin já tinha saqueado um paiol e 414

levado todos os discos para as Lewis, cintas para as Vickers e depósitos para as Lee-Enfield, mas as munições chegavam agora ao fim e a defesa do posto tornava-se insustentável. Afonso sabia que era impossível resistir com baionetas. Sem balas não valia a pena permanecer em Picantin.

“Vamos evacuar o posto!“, gritou. “Toda a gente ajuda os feridos a saírem.

Carreguem-nos às costas, se for preciso. “ Apontou para Matias. “Cabo, você fica aí a dar-nos cobertura com a Luisa e só sai quando o último homem abandonar o posto” Apontou para a sua ordenança. “Joaquim, ajuda-o. “

Joaquim posicionou-se no ninho da Vickers bloqueada com a Lee- Enfield a espreitar pela seteira e Matias Grande colocou-se num ponto donde podia observar em simultâneo a esquerda e a direita. Quando o resto da guarnição deixou de disparar e começou a retirar, Joaquim passou a alvejar os vultos que se moviam em frente, enquanto Matias abria fogo em diversas direcções com rajadas muito curtas. O objectivo dos dois portugueses já não era agora o de abaterem soldados inimigos, mas simplesmente criarem a impressão de que aquela posição tinha ainda muitos homens a defendê-la.

Afonso registou a hora em que o posto foi abandonado. Eram onze da manhã. A guarnição de Picantin Post fez-se às trincheiras quase sem munições e carregando duas dezenas de feridos. A maior parte seguiu pelo próprio pé, alguns apoiando-se nos camaradas quando os seus ferimentos eram numa perna e os impediam de andar normalmente. Três seguiram em macas impro-visadas, não estavam em condições de caminhar. Com a coluna a caminho, Afonso olhou uma derradeira vez para o posto e interrogou-se quanto ao tempo que Matias e Joaquim ainda conseguiriam resistir sozinhos.