Logo à segunda rajada, por sinal certeira, o sargento Rosa foi atingido na cabeça e tombou morto, o outro homem sofreu vários tiros nas costas e deixou igualmente de dar sinal de si.
Um dos feridos que se encontrava deitado na maca também foi atingido e agonizava, moribundo. Afonso, Matias e Baltazar entreolharam-se. Perceberam que tinham chegado ao fim da linha. Antes que fosse disparada a terceira rajada, Afonso esticou o pescoço e gritou:
“Kamerad! “
O primeiro a levantar-se, os braços bem erguidos, foi Baltazar. O Velho pôs-se de pé e foi imediatamente abatido por vários tiros de espingarda. Matias viu-o tombar ao seu lado sem soltar um gemido, os olhos a rolarem para cima e a ficarem brancos, um buraco na testa e outros presumivelmente no tronco, a nuca aberta pela saída da bala, via- se a matéria branca e esponjosa da massa encefálica a escorregar para fora do crânio. O cabo observou-o, estupefacto, mal queria acreditar que aquele era o seu amigo Baltazar, que ele caíra morto, abatido como um cão quando se rendia. Parecia a Matias que vivia um sonho, experimentou uma sensação de profunda irrealidade, de uma estranheza dormente, teve a impressão de que nada daquilo estava a acontecer, via e não acreditava. Primeiro tinha sido o Lingrinhas, depois o Manápulas, agora o Velho, o seu desfalcado pelotão já não existia, tinha sido dizimado em poucas horas, os amigos transformados em pedaços de carne inerte. Cerrou os olhos, abanou a cabeça e abriu-os novamente, na ilusão de que despertaria assim do sonho, mas Baltazar permanecia deitado, o olhar vidrado. Estava mesmo morto.
Fitou-o aparvalhado, atordoado, perdido numa incredulidade embasbacada.
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A voz do capitão, rouca e gutural, despertou-o da letargia. “Kamerad! “, gritou Afonso, a plenos pulmões. “Kamerad! “ O tiroteio foi enfim suspenso. Aproveitando a pausa, o capitão voltou a berrar. “Ich bin Kamerad! “
Ouviu-se um burburinho à distância e uma voz respondeu a Afonso.
“Ergebt euch.“, gritou. “Legt die Waffen nieder Los Los“ Depois, uma segunda voz adoptou o francês das trincheiras. “Armes pas bonnes. Portugais prisoniers, bonnes.
Portugais guerre, pas bonnes Jetez les armes “
Afonso olhou para Matias. O cabo encontrava-se em estado de choque, embora já estivesse a sair do breve transe em que mergulhara. A sensação de irrealidade permanecia forte, ainda acreditava que tudo aquilo podia não passar de um sonho mau, mas, à cautela, algo dentro de si decidiu que se deveria portar com prudência, afinal de contas o que estava a acontecer em seu redor começava a parecer muito real.
“Eles querem que atiremos as armas fora”, explicou-lhe Afonso. Os dois pegaram nas respectivas Lee-Enfield e projectaram-nas para a frente, de forma suficientemente alta para serem vistas à distância. A seguir, devagar, a medo, ergueram-se com as mãos levantadas, primeiro permaneceram curvados, esperando a todo o momento o pior, e depois, mais confiantes, endireitaram o tronco, os braços sempre esticados para o céu.
Mascarenhas espreitou pela seteira e olhou na direcção que lhe indicava o alferes Veiga. Lá ao fundo circulavam camionetas a transportarem soldados e viam-se homens com bandeirolas a regularem o trânsito, eram os alemães a enviarem reforços para aproveitarem as brechas abertas pela ofensiva dessa manhã. O céu cobrira-se de aviões inimigos, o que consternava os sitiados.
“É impressionante!“, exclamou Mascarenhas. “Não se vê um único aero-plano nosso.“
Veiga assentiu.
“Estamos totalmente isolados, meu major. Somos uma ilha num mar de boches.“ Já passava das quatro da tarde e o major decidiu inspeccionar o blockhaus. O abrigo de cimento onde se encontrava encerrado estava camuflado por uma casa. Era constituído por dois andares, ambos com seteiras por onde os ciclistas britânicos colocavam as suas metralhadoras pesadas e regavam as posições ini-migas. Mascarenhas contou os efectivos, contabilizando setenta ingleses e quase cento e setenta portugueses, a maior parte do 13, mas alguns do 15. Muitos dos portugueses estavam feridos e tinham pensos espalhados pelo corpo. Dentro do blockhaus havia ainda uma zona de segurança adicional, um abrigo de betão com câmara de rebentamento, onde se entrincheirara o comandante britânico com a maior parte das munições. Mascarenhas foi lá implorar um remuni-ciamento e o 419
major inglês cedeu-lhe cinco mil cartuchos. O major do 13 distribuiu as balas pelos homens e, já sem nada para fazer, voltou às seteiras.
A sombra da noite emergiu no horizonte como um vulto umbroso, sobretudo do lado donde vinha o inimigo, mas os aviões mantinham-se no ar com os seus voos rasantes.
“Parecem moscas”, comentou Mascarenhas junto do cabo Guedes.
“Gostava de apanhar um com a minha Luisa”, comentou o cabo. “Daqui não é possível”, explicou-lhe o major. “Precisavas de estar num ponto alto. “ O cabo franziu o sobrolho.
“O meu major está-me cá a dar uma ideiazinha”, disse, com um sorriso malicioso.
“Vou lá acima, ao telhado. Pode ser que tenha sorte. “
Guedes pegou na Lewis e subiu ao telhado da casa erguida por cima do blockhaus.
Encostou-se à chaminé e ficou a aguardar, observando a evolução dos aparelhos sobre Lacouture. Um avião aproximou-se finalmente pela frente, baixou e, quase em voo rasante, começou a metralhar o abrigo de betão. O cabo ergueu a Lewis, apontou e largou uma rajada. O aparelho flectiu para a direita e ganhou altura, esquivando-se ao fogo do telhado.
Desapontado, Guedes regressou ao blockhaus.
Afonso e Matias Grande caminhavam lado a lado sem trocarem palavra. Sentiam-se demasiado cansados para isso. Marchavam como máquinas, alheios ao que os rodeava, a mente apenas fixa nos acontecimentos da manhã, relem-brando cada episódio, os instantes dos bombardeamentos e as circunstâncias que envolveram a morte dos amigos.
Caminhavam como sonâmbulos, trope-çando pelo caminho, a mente ausente, estavam já mergulhados no passado, nas memórias daquela manhã brutal, reviviam ainda cada sentimento, cada sensação, o terror e o medo, os cheiros e os sons, as explosões e os gritos.
O nevoeiro já tinha levantado, revelando uma paisagem lunar fumegante, as trincheiras revolvidas pelas bombas e pelas granadas ao ponto de se terem tornado irreconhecíveis. Os prisioneiros seguiam sozinhos, sem escolta, cruzando-se com milhares e milhares de soldados alemães que marchavam por Fauquissart rumo à frente de combate.
O oficial que os revistara tirara-lhes as máscaras antigás, pelo que ambos vigiavam o terreno de uma forma incons-ciente, pareciam alheados de tudo e, no entanto, algures na sua mente permane-ciam vigilantes, preocupados em detectarem atempadamente qualquer nuvem suspeita. Avançaram pela Great Northern e passaram ao lado de Flank Post.
Afonso lançou um olhar ausente sobre o abrigo, mas a desolação daquele sítio familiar despertou-lhe a atenção, o posto encontrava-se totalmente devastado. Viam-se alguns mortos, corpos esfacelados, deitados de bruços ou em posições estranhas. Os soldados 420
alemães paravam aqui e ali para examinarem os cadáveres. Tiravam-lhes dinheiro, algumas peças do vestuário, botas, relógios e, sobretudo, comida.
Afonso e Matias chegaram à antiga linha da frente e constataram que, das trincheiras portuguesas, apenas restava agora um vago enfilamento. O seu interesse pelo que os rodeava aumentou consideravelmente a partir desse ponto, foi como se começassem a emergir de um sonho. Entraram na terra de ninguém e meteram em direcção às antigas linhas inimigas. Afonso achou estranho estar a passear assim, à luz do dia e com descontracção, por sectores onde antes apenas se circulava à noite e muito a medo.