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Um soldado alemão, por sinal corpulento, aproximou-se dos dois e gritou para Matias, apontando-lhe para os pés.

“Gib mir deine Stiefel! “

“Ele quer as tuas botas”, traduziu Afonso.

Matias ficou surpreendido, mas obedeceu. Sentou-se no chão e descalçou maquinalmente as botas, que entregou ao soldado inimigo. O alemão tirou as suas e colocou as do português, que eram aproximadamente do mesmo tamanho. Ergueu-se e assentou bem os pés no solo.

“Mist, die sind kaputt!“, vociferou, desagradado. Arrancou as botas de Matias e atirou-as furiosamente contra o cabo. De seguida, calçou de novo as suas e foi-se embora.

“O gajo devia julgar que as nossas botas eram iguais às dos camones”, comentou Matias enquanto se calçava.

“O que é que têm as tuas botas? “

“Estão descosidas à frente”, explicou o cabo, exibindo a sola aberta. “Está a ver? “ Esticou a perna e aproximou a bota dos olhos do capitão. “O boche ficou pior do que uma barata. “

Atingiram a primeira linha alemã em Nut Trench e meteram por um enfilamento de trincheiras até chegarem à curva de uma estrada. Fazendo um esforço para recordar o traçado das linhas inimigas nos mapas, Afonso concluiu que aquela era a Rue Deleval, uma estrada com tanta importância para os alemães como a Rue Tilleloy para os portugueses. Se esta era a Rue Deleval, raciocinou Afonso, ali à esquerda situava-se a Farm Delapone e Orchard e a curva onde se encontravam correspondia a Irma's Elephant.

Um oficial aproximou-se dos dois e ordenou-lhes que se dirigissem para um ponto à direita, na Rue Deleval. Obedeceram e foram dar a um local onde se encontrava um punhado de militares portugueses.

“Ora viva”, saudou Afonso.

“Ruhe!“, berrou um guarda, mandando-o calar.

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O grupo permaneceu em silêncio à espera de instruções. A noite caía e surgiu um segundo oficial que os mandou seguir dois soldados. Dirigiram-se para oeste e fizeram a curva para sul num local que Afonso identificou como sendo “Sousa”, uma casa assinalada no mapa do CEP e que, por ironia, perten-cera a um português radicado na Flandres.

Desceram pela estrada, caminhando paralelamente às antigas primeiras linhas alemãs, viram a Rue Dante à esquerda, mas os guardas ignoraram-na, e prosseguiram pela Rue Deleval.

Continuavam a ver-se aqui muitas formações de soldados a marchar com aprumo para combate, homens enquadrados por oficiais a cavalo que lançavam sobre os prisioneiros olhares cheios de curiosidade. Diversos oficiais alemães chegaram a abrandar a marcha das montadas para melhor observarem os soldados inimigos. Seguindo mecanicamente os guardas, os portugueses cruzaram Clara Trench e Butt House, mas, quando atingiram a Fauquissart Road, apanharam-na em direcção a leste, rumo a Aubers, afastando-se definitivamente da Rue Deleval e da zona da frente.

As granadas começaram a atingir o blockhaus com violência às seis e meia da tarde.

Ouvia-se o guincho dos projécteis em voo e, com o impacto das bombas, o edifício estremecia, abanando até aos alicerces, um fragor terrível a encher o interior. A estrutura rangia, algumas partes desmoronavam-se, caíam destroços por toda a parte, uma nuvem de pó dançava no ar. Mas, no essencial, o abrigo aguentava-se, era sólido e maciço.

Mascarenhas decidiu percorrer os dois andares do blockhaus, preocupado em manter o moral dos homens. Nada melhor do que uma conversa para distrair a mente e fazer os homens esquecerem as granadas que choviam sobre o edifício.

“Não se preocupem, o abrigo foi construído para aguentar isto e muito mais”, explicou a um grupo do 13 que guarnecia uma das seteiras.

“Ó meu major, a malta cá não corta prego”, disse um soldado com um sorriso forçado. “Mas, mesmo que estivéssemos cagados de medo, não tínhamos por onde cavar, não é? “

“Quem vai cavar são os boches, vocês vão ver. Os camones vão-nos enviar reforços, corremos com esses cabrões todos e ainda vamos ser tratados como uns heróis. “ Uma granada atingiu o blockhaus, fazendo estremecer o edifício, e todos se calaram.

Caiu algum pó, mas não houve consequências de maior.

“A mim, o que me deixa mais nicado é a fome “, exclamou um soldado.

Mascarenhas sorriu.

“Se pudesses encomendar um prato, o que é que escolhias? “ “Ó meu major, isso é pergunta que se faça? “

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“Então, rapaz? Não temos comida, mas nada nos proíbe de sonharmos com ela, não é?”

“Ah, meu major, eu alambazava-me com uma boa feijoada à transmontana, caraças, uma daquelas que a minha mãe faz. “

“Tu és donde? “

“Eu sou de Bisalhães, meu major, mesmo ali ao pé de Vila Real. “Bem sei, bem sei”, retorquiu Mascarenhas. “A terra dos barros negros. “ O major sabia que não havia nada de que um soldado mais gostasse do que falar de comida e sonhar com a sua terra. Esses eram dois temas que garantidamente desperta-vam o interesse de qualquer homem, para além das mulheres, claro. Dadas as circunstâncias, falar sobre esses assuntos era o melhor modo de os manter distraídos e animados. Voltou-se, por isso, para outro soldado. “E tu donde és?“

“Eu sou de Lamas de Olo, meu major.”

“Onde é isso? “

“Em Trás-os-Montes, meu major”

“Ó homem, isso já eu sei, aqui toda a malta é de Trás-os-Montes. Mas onde é que fica essa terra? “

“Lamas de Olo é lá para o Alvão, meu major. Entre o Tâmega e o Corgo “

“E é bonito? “

“Se é bonito? É o paraíso, meu major, o paraíso! Vive-se lá no meio da serra, tomam-se umas banhocas nas Fisgas de Ermelo, dá-se um passeio até ao Alto das Caravelas, anda-se à caça, come-se perdiz com uvas, faisão com castanhas, eu sei lá.“ O homem suspirou.

“Ah, meu major, isto é que são cá umas saudades.“

“Não me falem em comida, caraças, não me falem na paparoca”, cortou o primeiro soldado. “Com a larica com que estou, até a merda do corno-bife me sabia a cabrito assado!“

Uma nova explosão interrompeu a conversa, era uma minenwerfer que embatera no bloclzhaus com aparato. O clarão da explosão iluminou as seteiras, agora que a noite caíra e toda a luz brilhava mais forte.

O soldado alemão apontou a Mauser para o tenente português e berrou:

“Die Jace her! “

O tenente ficou embasbacado, sem perceber o que queria o homem.

“Dê-lhe a gabardina”, disse-lhe Afonso. “Ele quer a gabardina” Aparva-lhado, o tenente despiu a gabardina, o alemão ficou com ela e foi-se embora.

“Ora esta”, queixou-se o tenente. “Agora gamaram-me a gabardina, vejam lá... “ 423

Ninguém disse nada, as ordens eram para manter o silêncio. O grupo prosseguiu a marcha, os guardas ignorando os soldados que pilhavam os prisioneiros. Contornaram o Bois du Biez, a posição alemã tantas vezes bombardeada pela artilharia portuguesa, e observaram com curiosidade os sólidos bunkers instalados no bosque e os muitos canhões que por ali se encontravam espalhados, eram um autêntico mar. Não se viam corpos de homens, mas havia em abundância cadáveres de cavalos, vítimas inocentes dos bombardeamentos portugueses. Prosseguiram o caminho pela Fauquissart Road e chegaram a Aubers. A povoação mostrava-se aniquilada, as casas reduzidas a ruínas, parecia Neuve Chapelle.

Depois de Aubers seguiram até Illies, onde foram levados para uns barracões erguidos num perímetro protegido por arame farpado. Ao fim de uma hora serviram-lhes o jantar, pão de centeio com uma salsicha e um dedo de manteiga. Foi o seu primeiro contacto com os bratwurst. Para beber, os guardas distribuíram água. Quando os prisioneiros terminaram a pequena refeição, receberam a visita de um general com ar bonacheirão.