J'aimerais bien revoir la France, Mais bravement mourir est beau.
Afonso achou a letra desadequada, era uma canção para militares fran-ceses que partiam para a guerra, não para soldados portugueses que dela vinham em cativeiro. Mas o capitão percebeu a intenção, sentiu o calor humano a erguer-se daquelas vozes, o orgulho a vibrar no coro, a multidão a agradecer, a prestar homenagem aos estrangeiros que por ela combateram. O oficial português deixou de caminhar curvado, com os olhos fixos no chão, arrastando-se pela calçada, abatido e cabisbaixo, não era essa a pose que dele esperavam aqueles franceses. Ergueu a cabeça, endireitou o tronco, atravessou a verdejante Esplanade e entrou com altivez pela majestosa Porte Royale, cruzando os muros fortificados da Citadelle.
O tiroteio recomeçou às oito da manhã, mas desta feita os sitiados pude-ram responder ao fogo inimigo. O Sol já nascera, iluminando os campos calci-nados de Lacouture e as posições donde os alemães abriam fogo sem cessar. As munições chegaram ao fim e Mascarenhas foi ao abrigo onde se refugiava o comandante do batalhão britânico e pediu mais cartuchos.
“Take it”, disse o major inglês, apontando para umas caixas de munições. “Les derniers, compris? Les derniers. “
Mascarenhas contou os cartuchos, eram dois mil. Os últimos. As munições foram distribuídas pelos homens que guarneciam as seteiras, com a recomen-dação de serem conservadores no gatilho e só atirarem pela certa. O major observou os terrenos circundantes e constatou que havia alemães por toda a parte, o blockhaus encontrava-se totalmente cercado. Às onze da manhã, as munições esgotaram-se, cada espingarda ficara reduzida à baioneta e a duas ou três balas, guardadas para derradeiras eventualidades.
Um homem aproximou-se então com uma bandeira branca na mão esquerda.
Mascarenhas observou-o pelo binóculo. O indivíduo vestia uma farda kakhi, era um 427
soldado britânico. As portas do blockhaus foram abertas, dando passagem ao homem.
Tratava-se de um maqueiro inglês que tinha sido aprisio-nado pelos alemães e trazia uma mensagem do inimigo. A mensagem foi entre-gue ao major inglês, que se reuniu à porta fechada com os comandantes de Infantaria 13 e Infantaria 15. A reunião terminou meia hora mais tarde e o comandante do 13 chamou os homens e anunciou que o comando do reduto tinha decidido que iriam render-se. Já não havia munições e o inimigo, aperce-bendo-se de que o fogo do blockhaus quase parara, ameaçava atirar tudo pelos ares. O
maqueiro saiu com a resposta dos sitiados e voltou mais tarde com as instruções dos alemães.
Mascarenhas desarmou os cem soldados de Infantaria 13, enquanto os oficiais do 15
e do batalhão inglês faziam o mesmo às suas praças. As Lee-Enfield, as Lewis e as Vickers foram amon toadas num canto. Os homens choravam convulsivamente ao formarem no interior do blochaus. Ainda choravam quando as portas se abriram e marcharam para fora do abrigo, entregando-se ao inimigo. O major ficou na cauda do grupo e foi dos últimos a abandonarem o reduto. De repente, ouviu armas a abrirem fogo e viu os homens à sua frente a recuarem, num pânico, num tropel aflito, os braços esticados no ar em sinal de rendição, mas também de desespero.
“Os gajos estão a disparar!“, gritou um soldado que tentava a todo o custo reentrar no blochaus. “Os gajos estão a matar-nos. “
Mascarenhas ainda viu, estupefacto e indignado, os alemães a descarre-garem as armas sobre os prisioneiros, mas um oficial inimigo interveio e o fogo foi suspenso. Alguns homens rebolavam-se pelo chão, feridos. O oficial alemão, com uma fita branca no braço e uma pistola em riste, gritava com os seus soldados. Depois, fez sinal aos sitiados para saírem, mas parecia mais preocupado em vigiar os seus efectivos do que os portugueses e os ingleses.
Os prisioneiros receberam ordem de marcha e seguiram pela estrada rumo ao cativeiro. Os homens de Infantaria 13, transmontanos rudes e teimosos, gente do campo habituada à vida dura em Boticas, em Alfândega, no Moga-douro, em Romeu e em Moncorvo, estes rústicos de modos bruscos e palavras toscas ergueram as vozes como crianças e começaram, de baixinho, num coro suave, a entoar o hino do batalhão: Palpita um peito d'aço em cada farda Do 13 nem um passo p'ra retaguarda.
Um alemão mandou-os calar. Passavam poucos minutos do meio-dia de 10 de Abril.
428
II
O cativeiro em Lille durou apenas alguns dias. Afonso foi colocado com três mil prisioneiros portugueses por detrás das portas de ferro do quartel do antigo regimento de couraceiros franceses, instalações militares encerradas na gigantesca Citadelle. Tratava-se de uma enorme fortificação em forma de estrela pentagonal, situada a noroeste de Lille e separada da cidade pelo rio Deúle e respectivos canais.
Foram dias duros, com os homens alimentados a pão, água e sopas aguadas.
Dormiam no chão e tiritavam de frio por falta de agasalhos. Os contactos com civis franceses eram proibidos, uma ordem de resto desnecessária devido ao isolamento em que se encontravam os prisioneiros. Mesmo assim, Afonso lobrigou um francês a prestar serviço na cantina e não tardou em meter conversa.
“Você é de Lille? “, perguntou-lhe na primeira oportunidade quando o homem lhe servia sopa, na fila do refeitório.
O francês olhou em redor, assustado.
“Shut, não posso falar com os prisioneiros. “
Afonso fixou-lhe os olhos.
“Conhece Paul Chevallier? Tem uma loja de vinhos na Vieille Bourse. “ O homem fitou-o com ar surpreendido. Para Afonso era evidente que o seu interlocutor conhecia o pai de Agnès. O francês recompôs-se e fingiu que verificava a sopa do português.
“Agora não”, murmurou muito baixo, falando apressadamente. “Escreva num papel o que quer e dê-mo amanhã, quando vier buscar a sopa “
Afonso passou a tarde à volta de uma folha, tentando redigir uma carta em francês.
Consultou amiúde um oficial português de origem francesa, pedindo-lhe para verificar palavras e rever frases. Procurava desse modo evitar erros ortográficos e incoerências gramaticais, como faltas de concordância e de género, num esforço para criar uma boa primeira impressão no destinatário, o pai de Agnès. Quando terminou de rever o texto, deu-se por satisfeito e passou a versão final para um papel limpo: Caro senhor Paul Chevallier,
429
O meu nome é Afonso Brandão, capitão de infantaria do exército português em França, actualmente prisioneiro na Citadelle de Lille. Escrevo-lhe estas curtas linhas para lhe comunicar que conheci a sua filha Agnès em Armentières e ela contou-me que, com o inicio da guerra, deixou de ter contacto com a família.
Assim sendo, informo-o de que o seu marido Serge morreu em combate logo nas primeiras batalhas e ela foi viver para casa do barão Redier em Armentières.
Apaixonámo-nos e pedi-lhe a mão em casamento, tendo a felicidade de a ver aceitar a minha proposta. Ela agora é enfermeira num hospital de guerra português e encontra-se bem de saúde. Rogo-lhe que lhe comunique, se tiver oportunidade de a ver antes de eu a encontrar, que estou vivo e de saúde, tendo sido feito prisioneiro pelos alemães. Não sei qual o destino que me reserva o inimigo, mas garanta-lhe, por favor, que a procurarei logo que seja libertado.
Com os melhores cumprimentos,
Afonso Brandão.