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Quando concluiu esta versão final, Afonso releu o texto, dobrou a folha e guardou-a no bolso. Ainda reconsiderou se valeria mesmo a pena omitir que Agnès se tinha casado e separado do barão Redier e que se encontrava grávida de um filho seu, mas receou que os padrões morais do seu futuro sogro fossem de tal modo estreitos que essa informação deitasse tudo a perder. Decidiu, por conseguinte, manter assim o texto. No dia seguinte, ao almoço, passou o papel discretamente para as mãos do francês das sopas, murmurando que o entregasse ao monsieur Chevallier.

O francês levou algum tempo a cumprir a missão. Alegou que não encontrava Paul Chevallier e que a sua loja de vinhos estava encerrada. As autoridades alemãs anunciaram entretanto que os portugueses iriam ser enviados para um campo de prisioneiros na Alemanha, e Afonso começou a temer que saísse de Lille antes de estabelecer contacto com o pai de Agnès. Mas, ao quarto dia, a resposta veio finalmente. O francês entregou-lhe um envelope por baixo da tijela da sopa e Afonso teve dificuldade em reprimir, durante a refeição, a vontade de ler imediatamente a carta que escondera dentro das calças. Engoliu apressadamente a sopa e o naco de pão e retirou-se para as camaratas, onde, encostado a uma parede, encetou o envelope:

Meu caro capitão Brandão,

Não sabe até que ponto fez de mim um homem feliz por ter recebido enfim noticias da minha pequena Agnès. Lamento a morte de Serge, parecia-me bom 430

rapaz mas, devo dizer, não o conheci bem. O que interessa, porém, é que a minha filha se encontre de saúde e feliz, como parece ser o caso.

A vida aqui em Lille, sob ocupação inimiga, tem sido muito difícil. A minha pobre Michelle faleceu há três anos, segundo os médicos vitima de pneumonia, mas na realidade vitima dos alemães. Os ocupantes começaram em 1914 a requisitar todos os bens das casas dos franceses. Levaram-nos mobílias, bicicletas, telefones e, o mais grave de tudo, até as camas. Tivemos de passar a dormir no chão. Houve também uma grande fome em 914 e 915. Debilitada e deitando-se todas as noites no frio soalho de pedra de nossa casa, a minha mulher não resistiu e desenvolveu uma pneumonia fatal. Restou-me a minha filha Claudette, mas, em 1916, os alemães deportaram-na de Lille, levando-a com muitas outras raparigas para trabalhos forçados no campo. Foram vinte e cinco mil pessoas de Lille, sobretudo mulheres e crianças, enviadas à força para a provincia para cultivarem a terra, partirem pedras, construirem pontes, fazerem sacos de terra e outros trabalhos de escravo. Felizmente, só durou cinco meses essa provação, e Claudette já se encontra de novo comigo.

Perdoe-me estas divagações de velho, mas elas têm um propósito. Conto-lhe todos estes pormenores sobre a nossa vida para o caso de ocorrer a circunstância contrária à que o senhor teme, isto é, encontrar-se o senhor primeiro com a minha filha. Asseguro-lhe porém, meu caro capitão, que, no caso de ser eu o primeiro a vê-la, lhe mostrarei sem falta a missiva que teve a amabilidade de me remeter e pode estar certo de que abençoarei o matrimónio que já acordaram, ciente de que o senhor a honrará e fará dela uma mulher feliz.

Deus o abençoe,

Paul Chevallier.

Dias depois, os guardas alemães mandaram os prisioneiros formar para serem transferidos para a Alemanha. Afonso e os seus companheiros saíram da Citadelle e atravessaram uma grande avenida, com o irónico nome de Boulevard de la Liberté, até chegarem à gare de mercadorias, no outro lado da cidade.

A viagem de comboio durou quatro dias e só terminou em Rastatt, uma pequena povoação na orla da Floresta Negra, na Baviera, onde os prisioneiros, esfaimados e doridos, foram encerrados num Russen Lager, ou campo russo. O campo tinha trinta hectares e estava dividido por blocos, cada um isolado por duas redes de arame farpado. O

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campo era inicialmente destinado a prisioneiros russos, mas, com a saída da Rússia da guerra no ano anterior, passou a albergar franceses, britânicos e portugueses.

Começou aí um calvário de vida de recluso. Afonso e outros oficiais foram submetidos a uma dura dieta de beterraba, cenoura, batata e farinha, por vezes com pedaços de carne ou farrapos de bacalhau. Os militares portugueses passavam as refeições a protestar contra a qualidade da alimentação, enquanto os oficiais britânicos se mantinham à mesa compostos e serenos.

Ao fim de poucos dias, Afonso foi transferido para a fortaleza de Friedrichfest, ainda em Rastatt, regressando mais tarde ao Russen Lager. Algumas semanas depois, os alemães levaram-no para Karlsruhe, fechando-o no Kriegs offizier gefangenenlager, um confortável campo de oficiais prisio-neiros situado num acolhedor parque da cidade e onde os portugueses se entretinham a admirar as atrevidas fraulein que se iam propositadamente bambolear frente aos reclusos estrangeiros. Houve mesmo um, o tenente Ribeiro, que fez amizade com uma alemã muito loira, a bochona, como lhe chamavam, não era esbelta mas parecia uma valente valquíria e caiu-lhe no goto, o namoro tornou-se tema de conversa entre os reclusos, era danado o Ribeiro! Não durou muito a permanência nesse cárcere paradisíaco, uma vez que o capitão recebeu nova ordem de transferência, desta feita para um miserável campo em Hannover, onde encontrou o comandante do seu batalhão, o major Montalvão, igualmente capturado na grande batalha.

Durante todo o tempo em que andou a saltar de campo de prisioneiros em campo de prisioneiros, Afonso procurou arranjar maneira de manter contactos com o exterior.

Escreveu à família através da Cruz Vermelha, mas teve maiores dificuldades em localizar Agnès, uma vez que não tinha memorizado a morada do anexo de Béthune. Optou por endereçar as cartas ao Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, sem nunca obter resposta. O

silêncio da francesa deixou-o perturbado e era permanente tema de preocupação. O capitão variava diariamente de estados de espírito, mergulhando em quieta melancolia ou consumindo-se em agitada inquietação, humores que alternava com esgotante frequência.

Os torpores melancólicos eram dominados por recordações pormenorizadas de todos os instantes que com ela passara e por emocionantes fantasias sobre o reencontro, mas os momentos de inquietação revelavam-se piores, interrogava-se então sobre a gravidez e a sua evolução e questionava-se doentiamente quanto aos motivos por detrás do silêncio às suas insistentes cartas. Poderá a correspondência ter-se extraviado? Terá Agnès abandonado o hospital? Será que ela já o esquecera? Emergia esgotado desses instantes de maior angústia, compensando-os com outros momentos onde alimentava a certeza de que estava tudo bem, tentava consolar-se, tranquilizar-se, convencia-se de que, afinal de contas, 432

as sucessivas transferências de campos de prisioneiros certamente dificultavam as coisas à Cruz Vermelha, impediam que os serviços fizessem chegar às suas mãos as ansiadas cartas de resposta.

Na companhia de Montalvão, Afonso mudou-se meses mais tarde para o campo de Breensen, em Mecklemburg, o último destino dos permanentes pas-seios pelo interior da Alemanha. Passou ali o mês de Outubro numa monótona existência, apenas animada por uma divertida representação de uma peça de teatro, encenada em três actos pelo tenente-coronel Malheiro, com o título de O Amor na Base do CEP. A acção decorria nas praias de Tréport e Paris-Plage, em França, facto que o capitão achou significativo. Na verdade, a escolha dessas estâncias de veraneio para o local da acção era bem representativa da forma como alguns oficiais encaravam os seus deveres na guerra, aquela era mesmo uma história de cachapins e palmípedes, oficiais da retaguarda habituados ao ócio e à vida au grand air na prazenteira costa francesa. Afonso conhecia alguns que até se gabavam de serem pagos para irem gozar a praia, beneficiando de um absurdo sistema de subvenções que premiava o desleixo. Enquanto um capitão que arriscava a vida nas trincheiras se limitava a ganhar a subvenção de campanha, aqueles que iam passear pelas grandes estâncias de veraneio beneficiavam de um subsídio extra de vinte francos diários para pagarem alimentação e casa e mais uns valentes trocos para o combustível.