A senhora Mariana indicou um cadeirão a dona Isilda, era o melhor lugar da casa, propriedade exclusiva do senhor Rafael.
“Sente-se, minha senhora, faça como se estivesse em casa. “ Isilda olhou de relance para o cadeirão e sentiu um vómito assomar-lhe à boca quando obser-vou as nódoas de gordura que o salpicavam, mas reprimiu o nojo e forçou-se a sentar-se.
“Ai que casa mais simpática que a senhora tem, senhora Mariana. É mesmo um encanto. “
A mãe de Afonso corou, ela que já habitualmente apresentava sempre as faces muito rosadinhas.
“Oh, minha senhora, não é nada de especial, é uma coisa muito humilde, muito modesta, uma casinha remediada. Sabe, nós somos gente pobre. “ Ergueu a sobrancelha e abriu-se num sorriso. “Pobre, mas honrada. “
“Certamente, senhora Mariana. Certamente. “
O senhor Rafael entrou na sala com lama malcheirosa nos braços, tinha estado na pocilga a pregar umas madeiras da cerca. Não gostou de ver a visi-tante sentada no seu cadeirão predilecto, mas ocultou a irritação. Cumpri-mentou secamente dona Isilda e sentou-se num banco.
“Então a que devemos a honra da sua visita, minha senhora “, perguntou, indo direito ao assunto.
Isilda respirou fundo. Teria de ser manhosa para vender a ideia que trazia na mente.
“Bem, como sabem, o Afonso trabalha lá na minha loja. “ uEle fez alguma coisa, o malandro?“, cortou Rafael, desconfiado e de semblante carregado.
“Não, não”, exclamou Isilda. “Pelo contrário, ele é uma jóia de moço, todos gostamos muito dele. Na verdade, aprecio-o tanto que acho uma pena ele perder-se como empregado na minha loja “
Rafael e Mariana miraram-na sem entenderem.
“Mas, minha senhora, temos muita honra em que ele esteja na sua loja”, assegurou o senhor Rafael.
“E eu tenho muita honra em que ele lá trabalhe”, devolveu isilda, ajeitando o cabelo.
“Penso, porém, que ele devia continuar os seus estudos para alargar os horizontes, ir mais longe na vida. “
“Ah, minha senhora, isso também nós gostaríamos”, replicou Mariana. “Mas, sabe como é, não temos posses, somos gente pobre e precisamos de toda a ajuda que pudermos 44
arranjar. E o Afonso na sua loja é uma bênção para esta casa, uma benção! “ “E é uma bênção para mim, creia-me”, insistiu Isilda. “Mas seria realmente bom para ele prosseguir os estudos. Compreendo a questão que está a levantar, a de não terem posses para tais projectos, e é por isso mesmo que vos trago uma proposta. “ “Uma proposta? “, admirou-se o senhor Rafael.
“Sim”, assentiu Isilda. “Sabem, um dos meus irmãos é padre no Minho e amigo do reitor de um seminário da arquidiocese de Braga. o Álvaro, não é para me gabar, mas ele é um encanto de homem, até dá gosto. Ora bem, se me derem autorização, eu poderia falar com ele para conseguir ao Afonso um lugar no seminário.
Os pais de Afonso entreolharam-se, surpreendidos com a sugestão.
“Mas, minha senhora, o problema não é esse”, atalhou Rafael, confuso. “O problema é que nós não temos como pagar o seminário, isso é...
“Eu pago”, cortou Isilda, a voz sobrepondo-se à do anfitrião. “É uma promessa que eu fiz a Nossa Senhora, a de ajudar um rapaz sem meios a ir para o seminário. Escolhi o Afonso, parece-me bom moço, atinado e respeitador. Além disso, com certeza que não se vai opor ao cumprimento de uma promessa a Nossa Senhora, pois não? “
“Não, não”, adiantou-se Mariana, aflita por ela e o marido poderem estar a ofender a mãe de Jesus, eram ambos tementes a Deus e não queriam conflitos com o Todo-Poderoso. “Valha-me Deus, minha senhora, isso não. Nunca. “
“Presumo também que não tenham qualquer objecção a que o vosso filho se torne padre?“, quis saber dona Isilda, de pernas cruzadas com pudor no cadeirão, um sorriso evangélico desenhado nos lábios no momento em que formulou a pergunta que ali a trouxe.
O senhor Rafael deixou-se ficar alguns instantes calado, meditativo, mergulhado nos seus pensamentos, reflectindo naquela inesperada proposta. Iria perder os rendimentos que o filho trazia para casa, é verdade, mas, por outro lado, ficava com menos uma boca para alimentar. Além disso, ter um padre na família não era coisa de menosprezar, traria prestígio social, atrairia o respeito dos vizinhos, seria um salto que jamais pensara estar ao alcance da família. Para mais, havia ainda a dimensão religiosa a considerar. Lembrou-se do sonho em que o anjo o aconselhou a ter mais um filho e achou que isso era uma premonição. No seu raciocínio de homem crente e religioso, concluiu que a sugestão de dona Isilda só podia ser um novo sinal de Deus.
“Muito bem, minha senhora”, concordou finalmente. “O Afonso vai ser padre. “ 45
O pequeno deixou a família numa manhã fresca do Outono de 1903. Agarrou-se teimosamente às saias da mãe, choroso, até o padre Álvaro, irmão de dona Isilda, o arrastar para o coche.
Gritou em desespero pela janela da carruagem, era a primeira vez que se separava da família, e só se calou depois de a casa da Carrachana desaparecer lá atrás numa curva, por entre a nuvem de poeira levantada pelo coche sobre o macadame da Estrada Real nº 65.
Caiu então no assento, de cabeça tombada, as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara e a soluçar abafadamente ao lado daquele estranho de sotaina. Sentia-se um pouco envergonhado pela figura que fizera, mas, ao mesmo tempo, tinha desejado manifestar de modo claro e inequívoco a sua revolta por o mandarem embora, a verdade é que tinha medo do desco-nhecido e sentia-se agarrado ao berço da Carrachana. Agora, que deixara a família, sentia-se só e aterrorizado, imaginava com horror que o tinham abandonado e interrogava-se repetidamente sobre o que seria de si, se alguma vez veria de novo os pais e os irmãos.
O padre Álvaro revelou-se, porém, uma pessoa gentil e bem disposta, acabando por conquistar gradualmente a confiança de Afonso durante a viagem. Era um homem baixo e compacto, de peito largo e com o maxilar inferior saliente, o cabelo meio-grisalho espetado para o ar e cortado curto. Poderia muito bem ser um agricultor ribatejano, mas era um homem de Deus. Apanharam o comboio na estação de Sant'Anna pelas nove e quarenta e o percurso até ao Porto durou quase dez horas. O que vale é que o padre Álvaro era homem de posses e confortos, não fosse ele tão de quem era, e não se importara de pagar mais de seis mil réis por cada bilhete para ir bem acomodado em 1. a classe. Era já noite escura quando chegou o momento de passarem na Dona Maria Pia, a temível ponte de ferro sobre o Douro. Afonso viu, horrorizado, a mancha sombria do rio a correr por baixo da frágil estrutura metálica e, fechando os olhos, encostou-se ao pároco em busca de protecção, pondo assim definitivamente termo à resistência.
Como não havia ligação ao Minho durante a noite, foram dormir ao Grande Hotel do Porto, na Rua de Santa Catharina, um edifício construído especificamente para ser uma unidade hoteleira e que oferecia aos hóspedes um sofisticado anexo para banhos e duches.
Cedo no dia seguinte, depois de um apressado pequeno-almoço, saíram do hotel e foram para a estação. O padre comprou mais dois bilhetes de 1. a classe, a mil réis cada um, e apanharam o comboio pelas oito da manhã. Foram precisas duas horas e meia para fazerem a ligação de Campanhã até Braga, tempo mais do que suficiente para finalmente entabularem uma conversa normal, apenas interrompida quando a carruagem deu entrada na estação da cidade minhota. O pequeno desceu em silêncio do comboio, agarrado à mão 46