Embora a peça lhe tenha devolvido inadvertidamente à memória alguns dos aspectos mais caricatos e lamentáveis da organização do CEP, a verdade é que a representação teatral teve o condão de, mesmo que por apenas um breve instante, lhe permitir desligar-se das suas preocupações obsessivas. Aquele tornou-se indubitavelmente um acontecimento no campo de prisioneiros, por sinal até bem divertido, sobretudo porque as várias personagens femininas eram, como não podia deixar de ser, interpretadas por oficiais. Foi de rir até às lágrimas ver o capitão Grilo, com o seu bigode farfalhudo e os braços gordos e peludos, a personificar uma jovem actriz parisiense, supostamente esbelta e deslumbrante, e a fazer arrebatadas declarações de amor ao enfezado tenente Santos. Só faltou os dois oficiais beijarem- se nos lábios para que a excitada plateia deitasse abaixo o barracão.
A representação não passou, porém, de uma fugaz distracção para Afonso, sempre com a mente voltada para a gravidez de Agnès. Pelas contas que os médicos tinham feito, o parto deveria ocorrer por esta altura e o capitão deses-perava por não poder estar presente.
Havia momentos em que a ansiedade o sufocava, apetecia-lhe fugir, passar pelo portão a correr, saltar as vedações, tinha sede de liberdade e fome de amor, faltava-lhe o ar naquela prisão, queria sair dali a todo o custo, a guerra não havia meio de terminar.
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Este estado de espírito só veio a ser alterado numa manhã cinzenta de Novembro.
Afonso acordou cedo, como todos os prisioneiros, vestiu-se e saiu do barracão, enfrentando o frio cortante e agreste da alvorada para se dirigir às latrinas. Quando passava perto do portão reparou que os guardas alemães do campo de Breensen estavam todos agarrados a jornais, o ar circunspecto, sombrio, trocando comentários em murmúrios secretivos. Já na véspera tinha notado que o ambiente era estranho entre os carcereiros, mas não atribuíra grande importância a esse facto. Agora, porém, o comportamento dos guardas tornara-se mais pesado e parecia ter os jornais como epicentro. Cheio de curiosidade, Afonso aproximou-se do grupo, formado por quatro soldados.
“Hallo“, cumprimentou. “ Jie geht “
Um soldado respondeu com um grunhido maldisposto, os outros mantiveram-se calados, ignorando-o, os olhos sempre fixos no jornal, perdidos nas notícias da frente.
Estranhando aquela postura, Afonso baixou a cabeça, espreitou a primeira página e sentiu um baque no coração. O jornal, datado desse dia, 12 de Novembro de 1918, anunciava que a guerra tinha acabado na véspera. Os aliados venceram.
Apesar do armistício, Afonso permaneceu mais dois meses no cativeiro. Foi libertado em Janeiro, em pleno Inverno, o corpo debilitado pelo frio e pela malnutrição. Apanhou um comboio para França, planeando ir à procura de Agnès, mas não tinha dinheiro e encontrava-se febril e enfraquecido. Percebeu que não estava em condições de ir no encalço da sua francesa e deixou-se levar até Brest com outros companheiros que com ele vieram desde Breensen.
No dia 25 apanhou o paquete Gil Ennes no grande porto francês e rumou a Portugal, o navio repleto de ex-prisioneiros e doentes, a maior parte tuberculosos. O
capitão procurou entre os tuberculosos aqueles que estiveram internados no Hospital Misto de Medicina e Cirurgia e depressa encontrou quem se lembrasse de Agnès.
“Er'uma gaja muita boa, nã era? “, disse um dos tuberculosos, por entre dois ataques de tosse. Falava de modo trapalhão, como Vicente, uma espécie de Manápulas com cerrado sotaque algarvio. “Alembro-me dela, pois m'alembro. Atão nã havia de m'alembrar? Aquil'é qu'era uma mulher, camano, nã era com'uns estafermos ordinarões que p'ra lá andavam, umas gajas qu'até bigode tinham naquelas bêças. “
“O que lhe aconteceu?”
“À francesa? Depois do 9 de Abril andava muita tristonha, tadinha!“ Tossiu. “A gaja tava prenha, acho qu'o homem er'um português que se finou durant'a batalha“ Mais tosse.
“Andava desconsolada, a pobrezita. Ao fim d'algum tempo meteu baixa e nunca mais lhe pusemos os olhos em cima.“ Ainda mais tosse. “Foi uma pena, aquela moça até 434
ressuscitava um morto, cara-ças, er'um'alegria vê- la passar pel'enfermaria a abanar aquela pêda gostosa.“
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III
A ponte foi colocada com firmeza, estabelecendo a ligação entre o Gil Ennes e o cais do porto de Lisboa. O oficial que comandava a operação coçou a barba rala enquanto observava os homens a assegurarem- se de que a ponte estava transitável. Quando as verificações ficaram concluídas e a atracagem completa, voltou-se para a legião de militares miseráveis e esfarrapados que observavam terra com incontida e faminta ânsia.
“Muito bem”, berrou. “Primeiro descem os oficiais, depois as praças e, no fim, saem os acamados. Quero um desembarque ordeiro e sem confusões. “ Fez um gesto para um sargento colocado junto à ponte. “Vamos lá. “
Os oficiais dirigiram-se para a ponte e atravessaram-na. Afonso aguardou a sua vez na fila, paciente, os olhos perdidos no horizonte entrecortado pelos familiares telhados vermelhos de Lisboa, a baça cor de tijolo a espraiar-se sob o azul-pálido do céu invernal. A sua atenção deambulou distraidamente em redor, fixou-se nas gaivotas que grasnavam em irrequietas nuvens, melancólicas, iam e vinham como ondas a cortarem o ar, por vezes rasavam as águas cristalinas do Tejo e perdiam-se nas cintilações de luz reflectida na crista da espuma, o aroma salgado do mar, no seu encontro amoroso com o rio, a encher-lhe as narinas e a trazer- lhe aos pulmões o esquecido perfume da sua terra, a maresia fresca e revigorante que flutuava na brisa baixa.
O capitão atravessou finalmente a ponte, pisou o chão do cais e verificou, surpreendido, que a fila dos oficiais se mantinha.
“Ó meu major, que bicha é esta?“, perguntou a Montalvão três lugares mais à frente.
“É para a Comissão Protectora dos Prisioneiros de Guerra.“ “Ah sim? Já temos comissão protectora? E ela protege-nos de quê?”
“Deve ser dos boches”, riu-se Montalvão.
À medida que a fila avançava, Afonso apercebeu-se de que, instaladas por detrás de uma mesa, umas senhoras de meia-idade iam entregando aos oficiais uns papéis pequenos.
Quando chegou a sua vez, uma das mulheres também lhe deu uma mão-cheia dos papéis.
“ O que é isto, minha senhora?”
“São senhas, senhor oficial” “Senhas? Senhas para quê? “
“Correspondem a donativos de vestuário e dinheiro. Com essas senhas, o senhor oficial pode adquirir os produtos de que necessita.
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Afonso guardou as senhas no bolso e seguiu o grupo de oficiais. Aglomeravam-se todos à volta de uma outra mesa instalada no cais, discutindo animadamente, alguns mostravam-se agastados e erguiam a voz, outros abriam os braços em desconsolo resig nado. O capitão estranhou o burburinho e foi ter com Montalvão.
“Meu comandante, o que se passa? “