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O major encolheu os ombros.

“Não sei bem”, disse, hesitante. “Parece que há um problema qualquer e não podemos ir para Braga “

“Não podemos ir para Braga? Porquê? “

“Não sei, não sei, não percebi. “

Afonso furou por entre o grupo e foi ter com um tenente que se encontrava sentado na mesa. Era um rapaz jovem, de bigode fino e com um tique na boca. O tenente tomava nota dos nomes dos recém- chegados.

“Ó tenente, o que se passa? “

O tenente nem levantou os olhos.

“Vocês vão ter de ficar aquartelados aqui em Lisboa”, disse, atarefado, sem parar de escrever “Ponha-se na bicha, se faz favor”

Afonso olhou com intensidade para aquele rapazola acabado de sair da Escola de Guerra, deu consigo a pensar que o miúdo nunca tinha escutado um tiro disparado em fúria, evidentemente nem sabia quão desesperada era a angústia que atormentava os homens diante de si, ignorava por certo aquela dolorosa e pungente ânsia de quem sofre pelo reencontro com as famílias, permanecia friamente alheio à fome de afecto e à sede de conforto que lhes assaltava o corpo e inquietava a alma. Em vez de os respeitar, o jovem tenente comportava-se até como se estivesse a fazer-lhes um favor, gastando a sua preciosa atenção com um bando de maltrapilhos malcheirosos. O capitão sentiu uma fúria cega, poderosa e libertadora, crescer-lhe no estômago, encher-lhe o peito, subir-lhe à cabeça e tomar conta de si.

“Tenente”, berrou de súbito, com voz de comando. “Em sentido perante o seu superior! “

O tenente estremeceu de susto, olhou alarmado para Afonso, ergueu- se atrapalhadamente da cadeira e pôs-se muito hirto, em sentido. Fez-se silêncio em redor.

“Mas que merda vem a ser esta? “, insistiu Afonso em tom ameaçador. “Então não se faz continência ao superior hierárquico?”

“Sim, meu capitão”, disse finalmente o tenente, lívido, erguendo a mão em continência.

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Afonso mirou-o de alto a baixo, inspeccionando-o. Apontou para os pés.

“Isto são botas que se apresentem? Hã? Isto são botas que se apresentem?” O tenente mirou de relance as botas.

“Meu capitão... uh... as minhas desculpas”, gaguejou, sem perceber o que havia de errado com as botas.

“Quando eu acabar de tratar de si, quero essas botas a brilharem como a baioneta de um boche, ouviu? Como a baioneta de um boche! “

“Sim, meu capitão. “

Afonso estava rubro. Respirou fundo e acalmou-se, subitamente surpreen-dido com a sua própria fúria, mais ainda por ter dito um palavrão, desde os tempos do seminário que era incapaz de dizer “merda”

“Agora conte-nos lá por que razão a malta tem de ficar aquartelada aqui em Lisboa”, ordenou o capitão, num tom de voz mais tranquilo.

Um clamor de aprovação ergueu-se do grupo de oficiais. O miúdo fora posto na ordem e tinha agora de responder à questão que todos queriam ver esclarecida.

“São... são ordens do general Figueiredo, meu capitão.“ “E quem é esse caramelo? “

“É o meu comandante, meu capitão “

“O general Paneleiredo, ou lá como é que esse tipo se chama, não sabe que a malta das trincheiras não vê a família há mais de um ano? Hã? Não sabe? “ O tenente baixou os olhos.

“Eu... uh... eu cá não sei nada disso, meu capitão “ Afonso ficou a observá-lo, as sobrancelhas cerradas, o ar desconfiado, intimamente perplexo por ter esboçado um segundo palavrão, Paneleiredo era algo que nunca pensou ser capaz de chamar a um superior hierárquico.

“E você? “, perguntou finalmente. “Sabe ao menos por que razão não podemos ir para Braga? “

“É por causa da revolta, meu capitão. “

“Da revolta? Qual revolta? “ “A do Norte, meu capitão “

“A revolta do Norte? Mas você ensandeceu? Que revolta é essa, hã? Explique lá, homem! Vamos, desembuche! “

O tenente transpirava. Olhou em redor, deixando escapar um esgar aflito.

“Foram os monárquicos, meu capitão”, titubeou. “Revoltaram-se há uns dez dias. A Junta Militar do Norte proclamou a monarquia no Porto e aclamou D. Manuel II como rei de Por4tugal. Aqui em Lisboa também se revoltaram, os monárquicos acamparam ali em 438

Monsanto e houve porrada da grossa na semana passada, mas os republicanos acabaram por vencê-los.

O tenente calou-se e os oficiais entreolharam-se, espantados.

“Sim senhor, isto está bonito”, comentou um major.

“Chegámos à balbúrdia, é o que é. “

“É a treta do costume”, avançou outro oficial.

“Sempre a mesma merda. “

“E o Sidónio, hã? Não faz nada? “, inquiriu Montalvão.

O tenente mirou-o com um olhar estupidificado.

“O presidente da República morreu. “

Fez-se silêncio no grupo.

“ O que diz você “, perguntou uma voz. “ O Sidónio morreu?”

“Foi assassinado na estação do Rossio”, esclareceu o tenente.

“Aí há coisa de mês e meio, antes do Natal. “

Com o país em pé de guerra e o Norte em rebelião, os militares minhotos foram instalados num quartel de Lisboa, aguardando o desenlace dos acontecimentos. Mas Afonso não era minhoto e tinha a família em Rio Maior, do lado de cá da fronteira invisível que, durante os tormentosos vinte e cinco dias que durou a Monarquia do Norte, dividia o país. Sem nada a prendê-lo à capital, o capitão apresentou-se no quartel-general, preencheu os documentos que regularizavam a sua situação, solicitou uma licença, que lhe foi imediatamente concedida, e dois dias depois, já bem dormido e comido, dirigiu-se à estação do Rossio. Corriam os primeiros dias de Fevereiro de 1919quando apanhou um comboio até às Caldas da Rainha e seguiu de caleche para Rio Maior, mal contendo a ansiedade que lhe enchia o peito.

O reencontro com a família foi emotivo e triste. Afonso soube então que o pai tinha morrido no ano anterior, na sequência de uma queda enquanto apanhava frutos numa árvore. O capitão foi nesse dia ao cemitério visitar a campa onde ele se encontrava sepultado. Depositou uma coroa de flores junto ao túmulo, rezou num murmúrio e encomendou uma missa em memória de Rafael Laureano.

À noite, a família juntou-se na Carrachana para o jantar, vieram os irmãos, Manuel, Jesuína, João e Joaquim, mais as respectivas famílias, todos reunidos para celebrarem o regresso do mais novo. A senhora Mariana colocou na mesa uma panela de misturadas e Afonso engoliu a sua dose com um prazer que o surpreendeu, não se lembrava de ter apreciado tanto aquele prato na sua meninice.

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“Isto está muito bom, mãe, está mesmo saboroso”, exclamou, acompa-nhando a sopa com o pão.

“Então não havia de estar bom?“, riu-se Manuel, o mais velho. “Para quem andava a comer aquelas porcarias todas na França e na Alemanha, isto deve ser um manjar de reis. “

“Diz lá se a nossa paparoca não é melhor do que a dos estrangeiros, hã? Diz lá”, desafiou-o Jesuína.

“Então não é?“, concordou Afonso. “Onde é que lá os franceses têm panela de misturadas?“

“O que é que eles comem, filho?“, quis saber Mariana. “Bem, comem mais ou menos o que nós comemos, só que confeccionado de maneira diferente e com nomes finos. Por exemplo, em vez de linguado frito, eles dizem linguado a la meunière, fica mais chic”

“E tu comias isso, meu filho? “

“Às vezes, quando ia aos estaminets ou aos bistrôts.“ “Ai que nomes esquisitos!“, comentou Jesuína. “Jesus, credo!

Até me faz espécie! “

“Ó Jesuína, tem juízo”, atalhou Joaquim. “Então que nomes querias que os franciús dessem às suas casas de pasto, hã? Tasca do Zé Russo, não? “ Deu uma grande gargalhada.