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“Havia de ser bonito, os franciús a dizerem uns aos outros: olha lá, vou ali à Tasca do Zé Russo aviar umas febras! “

Riram-se todos. Manuel sabia ter graça quando se juntavam em grupo. Assumindo-se agora como o chefe da família, ou não fosse ele o homem mais velho depois da morte do pai, gostava de animar as reuniões familiares.

“Ó Manel, não é nada disso”, retorquiu Jesuína, vexada por ser alvo da chacota do irmão. “Estava só admirada por o Afonso saber as palavras estran-geiras, só isso. “

“Mas, ó Afonso, então tinhas de comer essas coisas dos franceses, era? “, insistiu a mãe, sempre preocupada com a alimentação que o filho teve na guerra, afinal de contas, constatou, o rapaz veio magro que nem um carapau, até as costelas se lhe viam, coitadinho, decididamente a comida não devia ser lá grande coisa.

Sim, mãe, também comia isso, mas só enquanto estava na retaguarda. Quando ia para as trincheiras, davam-nos uma carne que vinha em latas inglesas, e isso era bem pior do que a alimentação francesa, acredite. E, depois de ser preso pelos boches, a coisa ainda piorou, os tipos quase nem tinham carne para os seus soldados, quanto mais para nós. “

“Ah sim, filho? E o que é que esses comem? “

“Quem? Os bifes ou os boches? “

“Os dois. “

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“Como é bom de ver, os bifes comem bifes”, disse. “Os boches enchem-se de salsichas, aquilo é uma coisa horrorosa, cheia de gordura, mas foi a única carne que para lá vi. Tudo o resto eram vegetais, batatas e coisas do género. “

“Nenhum faz as comezainas da tua rica mãezinha, pois não? “ “Oh, mãe, claro que não. “

“Não há paparoca como a da nossa mãezinha”, concordou Manuel, sempre bem-disposto e já ligeiramente tocado pelo vinho. Olhou para a mulher e acrescentou: “A nossa mãezinha e aqui a minha Aurinda, pois claro “

“Ah, estava a ver!“, devolveu a mulher.

Afonso olhou em redor, como se procurasse alguma coisa. Desde que chegara a casa que queria saber se Agnès lhe tinha escrito, essa era uma questão absolutamente essencial, prioritária. Precisava de conhecer o seu paradeiro, receber notícias, entrar em contacto com ela, arranjar maneira de ir à Flandres para a ir buscar ou para lá ficar. Além do mais, e pelas suas contas, já deveria ser pai havia uns dois ou três meses, mas necessitava da confirmação. O problema era levantar a questão, não sabia bem como o fazer. Engoliu em seco e encarou a senhora Mariana, esforçando-se por dar o ar mais natural possível à pergunta que tinha para lhe colocar.

“Ó mãe, já agora, não recebeu nenhum correio para mim, pois não? “, perguntou, fingindo que essa ideia acabara de lhe ocorrer.

“Correio donde, filho? “

“Sei lá. De França, por exemplo.“

“De França?”

A senhora Mariana mostrava-se genuinamente surpreendida e Afonso, acossado pela impaciência e vergado pela ansiedade, não resistiu e foi direito ao assunto.

“Sabe, mãe, estou à espera de uma carta de uma senhora francesa. “ Foi a risada geral, para grande embaraço de Afonso, imediatamente arrependido por ter levantado a questão à frente de todos. A mãe sorriu e piscou-lhe o olho.

“Com que então o meu menino tem amiguinhas francesas, é? “ Afonso corou.

“Oh mãe, não é nada do que está para aí a pensar...” “Ah, grande Afonso!“, rugiu Manuel do outro lado da mesa. “Bem me parecia que ias honrar o nome dos machos da família, caraças! É d'homem! Aposto que as francesas te vieram todas comer à mão, hã?

Rica vida deves ter tido lá na França, sim senhor!“

“Cala-te, Manel!“, ordenou a mulher, a tesa Aurinda. “Já chega de brincadeiras, deixa lá o rapaz.“

Mas foi Mariana quem não o largou.

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“Então e a Carolina, hã? Já não queres saber dela?“ “Mas o que é que eu tenho a ver com a Carolina, mãe? Ela está casada e que seja muito feliz.”

“Está casada, não. Está viúva.“

“Viúva? O que é que aconteceu ao marido?“

“Apanhou o tifo. Houve para aí uma epidemia desgraçada no ano passa-do, em Março, e o senhor engenheiro bateu a bota. “

“Coitado. “

“Coitado, não! Não se tivesse metido com a Carolina, que era tua. Olha, ela se calhar até ficou melhor! “ Olhou-o com matreirice. “Assim como assim, está agora sem homem”

“Vai-te a ela!“, berrou Manuel, os bigodes a pingarem gotas de tinto.

“Cala-te, Manel”, insistiu Aurinda.

A paciência de Afonso chegara ao limite.

“Chega, parem com isso”, exclamou, a voz irritada. “Deixem-me em paz! “

“Pronto, pronto, não te enerves. “

Afonso respirou fundo. Tinha levantado a questão e iria agora até ao fim.

“Ó mãe, diga lá, recebeu ou não recebeu nada para mim? “ “ De França?”

“Sim. “

Mariana esboçou um trejeito de boca enquanto vasculhava a memória.

“Não... não... hã, espera... lembro-me de que o Inácio apareceu aí... “

“O Inácio?“

“Sim, o carteiro. Agora, que falas nisso, lembro-me de que ele apareceu aí com uma carta para ti. Como não tínhamos notícias tuas, eu mandei o teu irmão ler a carta”, disse, apontando para Joaquim.

Afonso interrogou o irmão com os olhos, mas este encolheu os ombros.

“Ó Afonso, eu abri a carta, lá isso abri, mas não percebi patavina do que estava para lá escrito, era em estrangeiro.“

“Francês? “

“Sei lá. Até podia ser em chinês. Não se percebia nada, eram uns gata-funhos horrorosos.“

“E o que fizeram com a carta?”

“Olha, filho”, atalhou a senhora Mariana. “Como nós não entendíamos aquela algaraviada toda, fui levar a carta à dona Isilda, que é muito culta e conhece as chinesices todas. Ela leu-a e disse-me para estar descansada, não era nada de importante.“

“A dona Isilda leu a carta? “

“Sim, Afonso, ela leu e.“

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Afonso ergueu-se da mesa, interrompendo-a.

“Desculpe, mãe, mas é imperativo que eu saiba o que dizia essa carta. Quando é que a recebeu? “

“Sei lá, foi... foi antes do Natal, mesmo antes. “

“Em Dezembro? “

“Sim, filho. “

Afonso vestiu um casaco e dirigiu-se apressadamente à porta. “Mas, ó filho, acaba o jantar. Onde vais tu, valha-me Deus?“ “Vou ali à dona Isilda”, despediu-se. “Já volto.“ O capitão seguiu a pé da Carrachana até ao centro de Rio Maior. A Casa Pereira encontrava-se encerrada, já era noite, mas Afonso sabia que a proprie-tária vivia no andar de cima e bateu à porta. Ouviu passos e a porta abriu-se. Carolina fitava-o com ar surpreendido, estupefacto até.

“Olá, Carolina, como vai isso? “

Estava mais madura, o cabelo num desalinho, embora permanecesse atraente.

Continuava a não ser uma beldade, mas não há dúvida de que era capaz de despertar as atenções dos homens.

“Afonso... que surpresa! O que estás aqui a fazer?“ “Vim falar com a tua mãe. Ela está? “

Os olhos de Carolina mostraram uma ligeira decepção, ocultando com dificuldade a desilusão por Afonso ter vindo à procura da mãe, não de si.

“Sim, sim, entra, disse ela, abrindo totalmente a porta. Desculpa receber-te assim, nestes preparos, mas, sinceramente, não estava nada à espera “ Subiram as escadas e Carolina levou-o à presença da mãe. Dona Isilda pareceu-lhe bem mais velha, acabada, o corpo franzino enroscado numa manta junto à lareira. Os olhos brilharam- lhe quando viu o seu antigo protegido entrar na sala, garboso naquela farda azul de militar.

“Olha quem é ele!“, exclamou. “O nosso herói” Afonso beijou-lhe a mão. “Como está, dona Isilda? “