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“Melhor”, sorriu ela. “Melhor, agora que te vejo. Estás um homem, rapaz, um homem. “

“E a senhora continua rija... “

“Não digas disparates, Afonso. A idade não perdoa.“

“Como vai o seu irmão? “

“Bem, ele vai bem. Foi transferido para Chaves, vê lá tu, mas anda fino. E pergunta muitas vezes por ti, oh se pergunta! “

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“Mande-lhe cumprimentos meus, dona Isilda. Diga-lhe que tenho sauda-des dele. “

“Serão entregues. Vai ficar contente por te saber de regresso da guerra. Coisa terrível, a guerra, hã? Terrível!”

Afonso suspirou.

“Sim, é algo inimaginável”. Fez uma pausa. “A propósito, fiz muitas amizades lá em França, e a minha mãe disse-me ter recebido uma carta para mim escrita numa língua que ela não identificou, que presumo ser francês, e que a trouxe aqui para a senhora ler. Tem aí essa carta? “

Dona Isilda agitou-se na cadeira, desconfortável. O rosto ensombrou-se-lhe e olhou de soslaio para Carolina, que assistia à conversa de pé.

“Carolina, minha filha, vai ali preparar uma tisana para a mãe e para o Afonso, vais?” Carolina ensaiou uma vénia e retirou-se para a cozinha. Mal a filha abandonou a sala, dona Isilda fez sinal a Afonso para se sentar e pegou- lhe na mão.

“Meu filho, tens de ser forte”, disse simplesmente. Afonso olhou-a com horror, um pavoroso pressentimento a pesar-lhe na alma.

“ O que foi, dona Isilda?” “Eu queimei essa carta. “

“Queimou a carta? Mas a que propósito? “

“Queimei a carta porque ela era terrível, Afonso, terrível. “ O capitão sentiu um baque no coração.

“O que é que a senhora quer dizer com isso? O que é que dizia a carta?” A velha baixou os olhos e suspirou.

“Não me lembro dos pormenores, só do essencial. A carta foi remetida de Lille e era assinada por um senhor”

“Um homem?”

“Sim, um homem. “

Só podia ser Paul Chevallier, pensou Afonso.

“E o que dizia ele? “

Dona Isilda apertou-lhe a mão ainda com mais força. “Dizia que a filha tinha morrido. “

Afonso abriu a boca, horrorizado. Não queria acreditar no que estava a ouvir.

“Qual... qual filha?“, balbuciou.

“Lembro-me de que se chamava Agnès”, disse dona Isilda. “Ela morreu. Ela e... a criança. Entendes? A criança. Apanharam a gripe espanhola e morre-ram em Lille “ Afonso permaneceu um longo minuto paralisado, boquiaberto, em estado de choque.

Tentou falar, mas nada conseguiu dizer. Lembrou-se da última imagem que guardava de 444

Agnès, a francesa no portão do hospital, sorridente, os olhos enamorados, despedindo-se de si com ar feliz, alegre com a notícia de que Afonso iria em breve abandonar as trincheiras. O capitão levantou-se com brusquidão e arrastou-se pela sala, sentiu-se a perder o equilíbrio, ouviu vagas vozes em torno de si, eram dona Isilda e Carolina a falar, mas não as entendeu, cambaleou pelas escadas aos sucessivos encontrões ao corrimão, julgou-se mergulhado num pesadelo mau, caminhou como um sonâmbulo e, quando finalmente saiu à rua, a noite ficou turva de lágrimas e ele chorou, chorou como nunca tinha chorado desde a infância, chorou com abandono, com desespero, chorou perdidamente, a voz largando urros terríveis, em atroz sofrimento. Sentiu-se perdido, rejeitado pela sorte, acossado pelo destino. Descobriu-se horrivelmente só.

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IV

Afonso estava sentado numa banqueta de Picantin Post, a fumar um cigarro, quando ouviu uma buzina Strombo a dar o alerta de gás tóxico. O alarme soava mesmo ao lado, ferindo-lhe os ouvidos. Sobressaltado, o capitão olhou em direcção à origem do som e descobriu, com estupefacção, que era Agnès quem accionava a Strombo. Deu um salto na banqueta, confuso. Receava acreditar nos seus olhos. Mas, no instante seguinte, as dúvidas desfizeram-se, era mesmo ela, sentiu um banho de felicidade a encher-lhe a alma e uma libertadora sensação de euforia a percorrer-lhe o corpo. Correu para ela, imensamente aliviado por vê-la viva, a tremenda alegria que o invadia a relegar para segundo plano a estranheza por encontrá-la ali nas trincheiras. Mas, quando se aproximava da sua francesa, preparando-se para a apertar num maravilhoso abraço de reencontro, viu o vulto cinzento de um alemão a aparecer sobre as trincheiras, mesmo por detrás de Agnès. Sacou da pistola e abateu-o. Logo um outro alemão surgiu também, e um outro ainda, e mais outro.

Puxando Agnès para trás de si, foi-os abatendo um a um. Mas eles não paravam de chegar, pareciam um formigueiro, avançavam inexoravelmente e tentavam cercá-los. Afonso começou a desesperar, a sentir que não conseguiria travar aquela inesgotável onda de assalto. Protegia Agnès com o corpo e abria fogo sem descanso para a direita e para a esquerda, febrilmente, matava-os uns atrás dos outros e eles, mesmo assim, avançavam, eram tantos que o oficial português entrou em pânico, tentou abraçar Agnès e disparar ao mesmo tempo, sentiu que a queriam levar, que lha tentavam roubar, que a procuravam matar, isso não podia ser, isso não podia ele permitir, nem pensar, nem pensar, uma imensa aflição encheu-lhe a alma, um indizível terror apossou-se-lhe do coração ante a perspectiva de a voltar a perder. Pôs-se a chorar, implorando à divina Providência para que a poupasse, para que a deixasse ficar com ele, Agnès era agora um frágil vulto atrás de si, ambos cercados por alemães que avançavam ameaçadoramente, ela debilmente protegida por um desesperado Afonso.

“O que é, filho? “

Afonso deu consigo sentado na cama, a gritar e a chorar, um nó na garganta, a mãe à porta a olhá-lo com alarme. Sentiu gotas de suor na testa, estava ofegante e tinha lágrimas nos olhos. Olhou em redor, momentaneamente confuso, aparvalhado, mas acabou por perceber. Suspirou.

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“Não é nada, mãe. Foi um pesadelo. “

A senhora Mariana levou a mão ao peito.

“Ai que susto que me pregaste, Afonso. Gritavas que era uma coisa aflitiva, valha-me Deus. “

“Foi só um pesadelo. “

“É mais um esta semana, filho. Vê lá se sonhas com coisas mais alegres, ouviste? “

“Sim, mãe. Boa noite. “

“Boa noite, filho. Descansa, vá. “

Afonso fechou os olhos, recostou-se na cama e tentou acalmar-se. Desde que soubera da morte de Agnès que aquele tipo de pesadelo lhe aparecera, era sempre diferente e, no entanto, sempre o mesmo, tão repetitivo no tema que se tornara recorrente.

Lembrou-se das conversas com a namorada sobre Freud e a importância dos sonhos e pôs-se a imaginar o que Agnès lhe diria sobre aquele pesadelo em particular. Talvez que ele ocultava um desejo e um sentimento de culpa, o desejo de a ver viva e os remorsos por não ter sabido protegê-la da morte, por não ter estado com ela no momento da doença, quem sabe se a sua presença não teria sido crucial para impedir o desenlace trágico. A mente de Afonso era assaltada por mundos alternativos, por hipóteses diferentes, a palavra “se” atormentava-o a todo o instante. Se ao menos eu tivesse feito algo diferente, pensava. Se eu não lhe tivesse arranjado aquele lugar no hospital, ou se eu tivesse ficado com ela no dia em que a fui ver ao hospital pela última vez, ou se eu tivesse fugido dos campos alemães, ou ainda se eu tivesse feito algo diferente, algo que alterasse o encadear dos acontecimentos, então talvez ela ainda vivesse. Eram tantos os “ses”, tantos os pequenos nadas que não foram alterados, tantas as minúsculas pedrinhas que provocaram aquela dolorosa avalancha. A culpa consumia-o, cruel e implacável, obsessiva e incansável.