O capitão permaneceu dois meses fechado em casa da mãe, na Carra-chana.
Encerrou-se no quarto com os seus demónios, atormentado pelos fantasmas que lhe assombravam a alma. Carolina foi vê-lo várias vezes nas duas primeiras semanas. A partir da terceira semana passou a visitá-lo todos os dias. De início ela falava e ele permanecia calado, em silêncio, deprimido, mergulhado nas suas memórias e nos seus planos destroçados, por vezes com ataques de ansiedade ou acessos de culpa. Tinha insónias e receava permanecer acordado, era atormentado por pesadelos e temia mergulhar no sono.
Não comia, sentia-se fraco e sem energia, a boca secava-se-lhe e a cabeça doía-lhe, deixara de se lavar, de se barbear ou de mudar de roupa. Mostrava-se apático, metido consigo, calado, solitário, não passavam cinco minutos em que não pensasse em Agnès, em que não sentisse dó da sua desgraça. Os sonhos e os pensamentos concentravam-se obcecadamente 447
no mesmo tema, como se tentasse reorganizar o passado, como se procurasse um desenlace diferente, mais feliz. Custava-lhe aceitar a realidade, alimentava por vezes a secreta esperança de receber uma carta que tudo desmentisse, acordava de manhã com a fugaz ilusão de que tudo não passara de um pesadelo, mas era apenas por um breve instante de traiçoeira fantasia. Depressa caía em si e percebia que o guião já estava escrito, não era possível mudar o passado, o que fora feito ficara feito, aquela era uma estrada já percorrida e sem retorno, uma ópera triste que já fora cantada. Pequenas coisas, palavras, sons, melodias, aromas, minúsculos nadas, lembravam-lhe Agnès. Doía-lhe a forma abrupta como tudo acontecera, a impossibilidade de se despedir. Agonizava sobre os instantes que precederam o falecimento, interrogava-se se ela sofrera, se estaria assustada, se se apercebera da morte a acercar-se, insidiosa e inexorável como uma terrível tempestade que se abate sobre a terra. Nesses instantes tornava-se ainda mais sombrio, deprimido, sorumbático, sentia-se vazio e fechava-se em si, mergulhava nas trevas de um abismo sem fundo.
A dada altura, porém, começou a reagir. Depois do choque inicial e dos primeiros meses de depressão, dias cuja existência não passava agora de um obscuro borrão na sua memória, despertou da letargia. Lembrou-se das palavras de Agnès sobre o efeito terapêutico da compreensão dos traumas e da verbali zação dos sentimentos e sentiu uma inesperada energia, ligeira mas firme, a tomar conta de si. Ajudado pela memória da francesa e por tudo o que ela lhe ensinara a respeito da mente e das suas dores, começou gradualmente a tentar resolver aquele sofrimento que o paralisava. O primeiro passo foi dado quando se pôs a escutar Carolina, sobretudo quando ela lhe falava no trauma da morte do marido. Compreendiam-se bem, tinham passado pelo mesmo, perderam o outro e custava-lhes encarar a realidade. Num certo sentido, eram almas gémeas, irmãos na mesma dor.
Afonso foi-se abrindo lentamente. De ouvinte passivo passou a narrador activo, de início titubeante, era difícil transformar os sentimentos em palavras, a dor era inefável, inexprimível. Mas, com o tempo, o capitão tornou-se mais fluido, mais articulado, emergiu a par e passo do abismo onde tinha mergulhado. Sentado na cama ou encostado à janela, reviveu dolorosamente o passado, passou os sentimentos a palavras, falou-lhe de Agnès, da sua vida, dos seus sonhos, dos seus projectos a dois, do amor que não vivera e da dor que o dilacerava. Chorou como uma criança quando começou a tocar na profunda ferida que lhe rasgava o coração, falava aos soluços e com esforço, receando aquele sofrimento mas enfrentando-o para o resolver, enfrentou- o com tal determinação que até parecia autoflagelação, fazia pena vê-lo sofrer daquela maneira.
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Uma tarde, logo depois do almoço, o padre Álvaro apareceu-lhe no quarto. Carolina saiu para os deixar a sós e o pároco sentou-se à borda da cama onde Afonso se encontrava estendido e quase se assustou com o aspecto do seu antigo discípulo, o cabelo despenteado e revolto dava-lhe um certo ar de doente, de louco. O capitão, por seu turno, olhou para o padre que o levou na adolescência para Braga e achou-o velho, a pele riscada de rugas e o corpo franzino a dobrar-se em curva, quase como se estivesse a desenvolver uma corcunda, os cabelos grisalhos a revirarem-se com rebeldia na cabeça e na barba.
“Então, filho?“, perguntou o padre Álvaro com voz meiga. “Então?” Afonso permaneceu calado. Avaliou-o com os olhos e depois fixou-se no infinito, num ponto perdido para além da janela. Só falou ao fim de três minutos.
“Porquê? “, perguntou enfim o capitão.
O padre observou-o, surpreendido.
“Como?“
“Porquê?”
“Porquê o quê? “
“Porquê? Por que é que isto me aconteceu?“ Afonso mirou-o. “Passei a guerra a pensar que morria, que talvez não escapasse. E, quando vejo que escapei, quando penso que tudo acabou, que a guerra terminou e que poderei afinal viver, é justamente nessa altura que ela morreu. Qual o sentido de isso ter acontecido? Que propósito essa morte serviu? Por que é que isto aconteceu? Porquê “
“Foi a vontade de Deus, meu filho. “
Afonso endureceu o olhar e voltou a fixar-se no infinito para além da janela.
“Deus não existe”, sentenciou finalmente.
O padre Álvaro endireitou-se, desconfortável com a blasfémia, olhou em redor, como se estivesse a assegurar-se de que o Senhor não estava no quarto e não ouvira tal heresia, e fixou-se no seu protegido.
“Então, filho? O que é isso? Vamos lá, vamos lá, é preciso acreditar n'Ele, na Sua bondade.“ Estendeu o dedo, indicando que aquele era um aviso, e levantou a voz para um nível que considerava suficientemente alto para que o Senhor o escutasse. “E é preciso também temer a Deus.“
“Disparate!“, cortou Afonso, cravando-lhe os olhos, canalizando ali a sua revolta interior. “Deus é bondoso ou Deus é temível? Hã? Em que ficamos? Que contradição é essa? Ou bem que é bondoso, ou bem que é temível. Não pode é ser as duas coisas ao mesmo tempo.“
O padre Álvaro contemplou-o com serenidade.
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“Deus é bondoso, temos de ter fé mas temos também de O temer. Afonso suspirou, impaciente.
“Sabe, senhor padre, eu vi muita coisa nestes últimos dois anos. Coisas de que não quero falar, coisas de que não consigo sequer falar. Até já me esqueci de algumas delas, veja lá. E, ao ver tudo isso, e após reflectir no assunto, só posso concluir que nos enganamos quando falamos de Deus. “
“Então, filho? Que coisas dizes, minha Nossa Senhora? “ “É tudo uma mão-cheia de disparates”, exclamou. Ergueu a mão esquerda, a palma voltada para cima. “Olhe, diz a Igreja que é preciso acreditar em Deus, é preciso ter fé, é preciso rezar. E eu pergunto, para quê? Então, os que não acreditam n'Ele vão para o inferno só porque não acreditam n'Ele?
Então, se eu for um patife e rezar todos os dias como um beato, e se outro for um homem de bem, íntegro e honesto, mas não tiver fé nem rezar, eu vou para o céu e ele vai para o inferno? Eu que sou um patife e ele que é íntegro? Mas isto faz algum sentido? Que Deus é este que é de tal modo egoísta que exige que O idolatrem, que coloca a idolatração acima da bondade? “
O padre revirou os olhos, fazendo uma prece silenciosa para que o Senhor estivesse distraído e não tivesse escutado aquele chorrilho de palavras pecami-nosas.
“Deus é o Criador, temos de O respeitar, de O amar, de O temer. “
“Olhe, se quiser, até estou pronto para aceitar a Sua existência”, assentiu Afonso.