“Mas garanto-lhe que, se Deus existe, não é certamente este Deus de que fala a Igreja. Deus não é bom nem mau, Deus é inexprimível, está para além das palavras, dos conceitos, da moral. Ele é simplesmente o Criador, a fonte das coisas, a origem da morte e a inspiração da vida. Deus está-se bem ralando para que morram dez, cem ou mil soldados, Ele quer lá saber de mim, de si, de Agnès ou de quem quer que seja. Para Deus, uma pedra vale tanto como uma andorinha, como uma pessoa, como eu ou o senhor, tudo o que existe são Suas criações, tudo tem o mesmo valor.“ Afonso pigarreou, pensativo. “Olhe, sabe qual é a grande questão, a questão que a tudo responde? “
“O quê?“
“A grande questão é a velha dúvida de saber por que razão Ele nos criou, por que razão Ele nos impinge tanto sofrimento, que propósito tudo isto serve? Essa é a grande questão, o grande mistério. “ Mordeu os lábios. “Acho que a chave desse mistério radica no problema de determinar se o futuro está aberto ou está fechado. Ou seja, se as coisas estão ou não previamente determinadas, se somos realmente livres e donos do nosso futuro ou se apenas temos a ilusão da liberdade e não passamos de escravos do destino, meras personagens no teatro divino.“ Afonso estudou as unhas, contemplou-as sem as ver 450
verdadeira-mente, os olhos embrenhavam-se no mistério que o apoquentava. “Estaria a morte de Agnès previamente determinada? Acho que a resposta a este proble-ma permite-nos perceber qual o desígnio da criação.“ O olhar perdeu-se de novo na janela. “A dificuldade, naturalmente, é que não tenho modo de respon-der a essa pergunta que tanto me atormenta. Será que a morte de Agnès estava antecipadamente determinada?“ Suspirou mais uma vez. “Bem, se a morte dela estava escrita desde o início dos tempos, isso significa que Deus é tudo, Ele tudo controla e tudo decide, nós somos uma ínfima parte do Seu ser.
Tal como uma célula desconhece que faz parte do corpo, nós desconhecemos que fazemos parte de Deus. O corpo é constituído por milhões de células, cada uma é uma entidade viva que tem uma individualidade e que não sabe que faz parte de um todo muito complexo, o corpo. Pois nós, a exemplo do que acontece com as células, vivemos na ilusão de que temos uma individualidade e que uma coisa somos nós e outra é o mundo, o universo, Deus, quando afinal é tudo a mesma coisa, tudo é uma ínfima parte do todo, de Deus “
“E se o futuro não está previamente determinado?“ “Nesse caso, senhor padre, receio mesmo que Deus não exista. Ou, se existir, tem muito pouco poder”
“Ai filho, não será isso antes o indício de que Deus decidiu conceber o homem como um ser livre?”
“Não creio. Sabe, não acredito nessa ideia de que o Todo-Poderoso tenha alienado o seu poder de tudo decidir. Se assim fosse, Ele não seria todo- poderoso. Se existe de facto um Criador omnipotente, pode estar certo de que Ele não criou o universo para deixar as coisas entregues ao acaso. Se Ele é todo-poderoso, Ele tudo decidiu. Consequentemente, se o futuro não está já determinado, é porque Ele tem poderes limitados. Um deus com poderes limitados não é Deus. Nesta hipótese, Deus talvez mesmo nem exista. “
“Ai, Jesus, como é que podes dizer isso?“, exclamou o padre Álvaro, revirando outra vez os olhos para cima, quase pedindo desculpa ao divino pela blasfémia do seu antigo pupilo, como se sentisse que aquele insulto a Deus também fosse da sua responsabilidade.
“Virgem santíssima! “
“Olhe, digo isto por uma razão muito simples. Se o futuro não está previamente determinado, isso significa que eu tenho livre arbítrio e que Deus não me controla nem a mim nem ao futuro. Ora, se eu controlo o meu destino, então é porque Deus não é todo-poderoso. As coisas não acontecem porque têm de acontecer, mas apenas como fruto do acaso e das várias vontades indivi-duais, sem propósito último nem razão transcendente.
Nesse caso, provavel-mente, Deus não passa de um desejo, de uma criação humana destinada a procurar um inexistente sentido para a existência “
“E tu, filho? O que achas? “
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Afonso recostou-se na cama e fixou os olhos no tecto. Havia duas aranhas coladas às teias num canto das paredes caiadas e escurecidas pela humidade, e o capitão ficou a observá-las a deambularem por entre os insectos inertes presos às suas redes. Estariam aqueles movimentos das aranhas determinados desde que o tempo começou? A questão apoquentava-o deveras.
“Eu quero acreditar que o futuro está previamente determinado”, disse finalmente.
“Só isso dá sentido a tudo o que passei e estou a passar. “
“Acreditando nisso, temes a Deus? “
“Isso é um disparate, já lhe disse. De que serve a Deus o medo dos homens? Na verdade, o medo a Deus é um conceito ridículo uma vez que sugere que o Criador é inseguro, talvez até prepotente, mimado, mesquinho e egoísta. Mas, se o futuro está previamente determinado, presumivelmente por Ele, de que Lhe serve que os homens O
amem ou O receiem se foi Ele quem tudo determinou ao escrever a ópera cósmica que interpretamos a todo o momento? “ Afonso abanou a cabeça e fez um trejeito de boca.
“Não, Deus não é para ser amado nem temido. Deus é, Ele simplesmente é. Move-se com um propósito misterioso e acredito que todos nós, homens, animais, plantas, coisas, todos fazemos parte desse propósito, desse projecto. Nada ocorre por acaso, tudo tem uma causa e um efeito. Agnès morreu e esse é um acontecimento aparentemente insignificante à escala do universo. Porém, acredito que essa morte faz parte do universo, acredito que o universo ficou diferente com o desaparecimento de Agnès e de cada um dos meus camaradas de armas. O seu falecimento é mais um acto da grandiosa peça de teatro previamente composta pelo dramaturgo divino, mesmo que o propósito da morte nos pareça gratuito.
O seu verdadeiro sentido permanece-nos desconhecido “
“Os desígnios do Senhor são insondáveis”, sentenciou o padre Álvaro.
Afonso mirou-o meditativamente.
“Essa é possivelmente a única grande verdade que a Igreja ensina, senhor padre.
Tudo tem um propósito, acho eu, mas esse propósito escapa-nos“ Baixou a cabeça. “A alternativa seria simplesmente insuportável. A de que as coisas acontecem por acon tecerem, sem sentido nem razão. Isso seria insuportável!” Afonso sentiu falta do padre Nunes, pensou que talvez só o seu antigo mestre seria capaz de o compreender realmente e calou-se. A tarde prolongou-se, silenciosa e lânguida.
O padre Álvaro despediu-se ao cair da noite, partiu intranquilo e inquieto, mas Carolina permaneceu. Nesse dia e nos seguintes. Foi para ela que Afonso se voltou em busca do equilíbrio, da salvação. Não tinha capacidade para acompanhar os seus raciocínios, mas oferecia-lhe conforto emocional. Carolina dava-lhe a mão nos momentos mais difíceis, 452
chegava mesmo a abraçá-lo quando o sentia desesperado, perdido, esvaziado. Deu-lhe forças e calor humano, ajudou-o a enfrentar os fantasmas do passado, as memórias de Agnès, a dor pela perda, os remorsos e o sentimento de culpa, a fúria e a revolta pela partida que o destino lhe pregara, o desespero por aquele ser um caminho sem retorno.
Fragilizado, Afonso agarrou-se àquela bóia, prendeu-se àquele porto seguro, soltou as emoções e abriu a alma. Ele abriu-se-lhe tanto que, quase sem dar por isso, de mansinho, foi-lhe também abrindo o coração.
Carolina e Afonso casaram no Verão de 1920, numa boda simples realizada na pequena igreja de Rio Maior. A missa foi celebrada pelo idoso padre Álvaro, tio de Carolina e protector de Afonso em Braga, um entusiástico mestre de cerimónias muito compenetrado no seu papel, o pároco fazia questão de conferir àquele casamento uma solenidade e grandiosidade que o tornariam inesquecível.