Mas um dos nubentes mal o ouvia. De pé no altar, diante do padre a celebrar a missa em latim, o capitão passou grande parte do tempo abstraído do que se passava em redor de si, a mente a vaguear pelo passado como um vagabundo perdido, a procurar Agnès, a imaginá-la ao seu lado, a fingir que aquela não era a pequena igreja de Rio Maior mas a grande catedral de Amiens, a efabulação tornou-se tão perfeita que até detectou um sotaque francês no latim do eclesiasta. Durante alguns instantes, todavia, regressava à realidade e intuía vagamente a monstruosidade da sua traição, percebia que entregava o seu corpo incompleto àquela mulher, faltava-lhe a alma e o coração, ambos reféns no amor de outra.
Compreendia a falsidade desse momento, a duplicidade daquela situação, os seus sentimentos encontravam-se longe dali, casava com uma e dificilmente passava uma hora em que não pensasse na outra. Arrependia-se e apetecia-lhe fugir, sair da igreja e correr, abandonar o altar e procurar o refúgio no aconchego uterino do quarto da Carrachana.
Num supremo esforço para se distrair, a mente depressa mergulhava no seu sonho, na sua fantasia, na estrada imaginária por onde caminhava em delírio febril, um trilho feito de memórias e sensações, de recordações de tempos felizes e de desejos por satisfazer.
No momento da verdade, quando o padre Álvaro lhe formulou a pergunta sacramental, Afonso disse que sim, ao seu lado estava Carolina e ouviu-o dizer sim, supôs ela que ele lhe dizia sim a si, não sabia que dizia sim a outra que lá não podia estar, o fantasma que para sempre seria a sua sombra.
Montaram casa junto à Praça do Comércio, em Rio Maior, atrás da velha Casa Comercial de José Ferreira Lopes. Dona Isilda iniciou Afonso na gestão da Casa Pereira.
Levou-o às fábricas onde ia buscar a mercadoria, apresentou-o aos fornecedores, explicou-lhe as contas e revelou-lhe as técnicas de venda. Ensinou-lhe como expor os produtos, 453
como receber os clientes, como avaliar os empregados, como decidir quando se deve ou não conceder crédito a um cliente, quanto crédito e durante quanto tempo.
“Um comerciante não tem coração”, repetiu-lhe ela. “A prioridade é defender o negócio, só isso conta. As decisões não podem ser ditadas pela piedade, mas pela racionalidade. “
Afonso afagou o bigode, meditando nestas palavras, duvidando se teria estômago para pôr na prática o que, com aquela facilidade, era dito.
“Mas, dona Isilda, às vezes encontramos situações humanas...“ “A Igreja que as resolva”, cortou a sogra. “Se fores piedoso e estiveres a conceder crédito a toda a gente que não pode pagar e mantiveres na loja empregados incom-petentes, tudo porque tens pena de toda essa gente, irás rapidamente à falência. Quando isso acontecer, rapaz, acabaste por prejudicar todos. Prejudicaste-te a ti, à tua família, aos teus bons empregados e aos teus bons clientes.“ Fez uma pausa e olhou-o bem nos olhos. “E sabes qual é a grande ironia, hã? Sabes? É que, feitas as contas, os maus empregados e os maus clientes ficaram como ficariam se tu os tivesses enfrentado mais cedo, uns ficam na mesma sem emprego e outros sem crédito, porque a casa faliu. A piedade nem a eles serviu. Nem a eles. “
“Mas cortar o crédito a quem precisa dos bens e despedir quem necessita de trabalho para viver é uma crueldade”, disse o capitão. “Não sei se sou capaz de o fazer. “ Isilda suspirou.
“Imagina, Afonso, imagina que estás na guerra e és atingido na perna por uma bala.
Vais para o hospital e os médicos verificam que a perna está a gangrenar. Constatando essa situação, os médicos só têm duas opções. Ou cortam a perna e salvam-te a vida, ou deixam ficar tudo como está, porque têm pena da perna, e tu morres no fim. Morres tu e, grande ironia, morre a própria perna. Agora imagina que o teu corpo é a Casa Pereira, o médico és tu e a perna gangrenada é um mau empregado ou um mau cliente. Se cortares a perna, salvas o corpo. Se não cortares, o corpo morre e a perna também. O que fazes, hã? O que fazes? “Bem... “
“O que fazes?”
“Uh... suponho que tenho de salvar o corpo, não é?“ “Lindo menino“ Ergueu o dedo. “Não te esqueças, rapaz. Um comerciante não tem coração e a prioridade é defender o negócio. “
Não foi fácil a adaptação, mas Afonso gradualmente se habituou às exigências da função, à impossibilidade de agradar a todos, à necessidade de avançar para rupturas, à prioridade de defender o colectivo sobre o individual. Afinal de contas, não era isso o que fizera durante a guerra? Apercebeu-se de uma curiosa ironia, a de que, nos momentos 454
críticos, apesar de o colectivo beneficiar das suas decisões, era o individual que atraía a simpatia geral. Se despedia um empregado fraco, por exemplo, todos o lamentavam, acusavam-no de não ter coração e de ser desumano, ninguém percebia que isso era para o bem da maioria. O colectivo era abstracto, o individual concreto, as pessoas reviam-se no indivíduo, não no grupo. Vendo bem, pensou, a morte da sua ordenança em Picantin tinha sido uma tragédia, mas a morte de qua trocentos homens em toda a batalha não passava de uma mera estatística. O colectivo era mais importante, reflectiu, embora fosse com o indivíduo que as pessoas realmente se identificavam.
O capitão começou por dividir a sua vida entre o negócio da família e a carreira militar. Passava muito tempo a viajar entre Braga e Rio Maior, até chegar à conclusão de que não podia continuar assim. Ainda considerou a hipótese de pedir transferência para o quartel de Santarém, mas, ao fim de dois anos de persistentes conversas, dona Isilda convenceu-o de que havia uma melhor opção.
“Tens de abandonar a vida militar, Afonso”, disse-lhe ela. “Há quanto tempo te digo isto, hã? Um negócio é como um casamento. Requer exclusi-vidade” Farrapos brancos e esponjosos, como tiras de algodão rasgado, pairavam imóveis por entre o azul profundo do céu, eram cirros matinais, nuvens altas e majestosas que assinalavam a suave chegada da Primavera de 1922. Afonso atravessou o Campo do Conde Agrolongo com os sentidos bem despertos, registando cada instante, inebriado por todas as sensações daquela manhã, queria guardar dentro de si o momento da despedida. Escutava com atenção o musical gorjear das recém-chegadas andorinhas, sentia o aroma perfumado dos pinheiros a flutuar na brisa fresca da manhã, era um ventinho macio e puro que lhe acariciava o rosto com gentileza e soprava com brandura sobre as árvores, os ramos agitados num farfalhar delicado, marulhante, sussurrado. Lançou um longo e nostálgico olhar sobre a larga fachada alva do quartel do Pópulo, sabia que aquela era provavelmente a última vez que visitava o edifício onde se fizera oficial.
O capitão dirigiu-se ao quartel para apresentar os papéis e despedir-se dos camaradas que com ele viveram a guerra. À conversa nas escadarias ou na messe, os veteranos deitavam ainda contas aos acontecimentos do 9 de Abril, contavam histórias, reconstituíam episódios, recordavam companheiros caídos, faziam balanços. O curioso é que, da guerra, as memórias pareciam apenas concentrar-se no pitoresco, relegando para um conveniente esquecimento justamente tudo aquilo que fizera daquela experiência uma coisa terrível. Não havia no Pópulo quem não tivesse orgulho na cruz de guerra de primeira classe que distinguira Infantaria 8 pelo seu comportamento na grande batalha, ou não considerasse justa a Ordem Militar da Torre e Espada que dois anos antes fora concedida à cidade de 455