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Lille pelo apoio que os seus habitantes prestaram aos reclusos portugueses, alimentando- os e ajudando-os à revelia dos ocupantes.

Afonso por todos passou, acenando aqui e cumprimentando acolá, subiu as largas escadarias cruzadas do pátio central e encostou-se languidamente à janela da secretaria.

“Então muito bom dia”, saudou, espreitando para o interior. Um alferes curvava-se sobre a mesa a dactilografar documentos. O homem ergueu a cabeça e levantou-se quando viu o superior hierárquico.

“Bom dia, meu capitão”, disse, fazendo continência. Deu dois passos e chegou-se à janela. “Posso ajudá-lo? “

Afonso olhou em redor e mirou o alferes.

“O que tenho de fazer para sair do Exército?”

“Como?”

“Eu quero sair do Exército. O que tenho de fazer? “ O alferes hesitou.

“Bem... uh... tem de preencher uns documentos e fazer um requerimento ao senhor comandante. “

“E quais são os termos do requerimento? “

“Tenho ali uma minuta, quer ver? “

“Ora passe-me lá isso. “

O alferes foi a uma gaveta, tirou uma folha e entregou-lha. “Aqui está. Mas, por favor, meu capitão, devolva-ma depois, é a minha única cópia. “

“Fique descansado. “

O alferes afinou a voz com um hum hum arranhado. “Sabe, o senhor comandante pode recusar o seupedido... “

“Fique descansado”, sorriu Afonso. “Eu falo com o comandante e ele não recusará nada. Depois do que passei na Flandres, era o que mais faltava “ O capitão demissionário preenchia os documentos no corredor do pri-meiro andar do quartel, sentado num banco junto à janela da secretaria quando sentiu um vulto a prostrar-se diante de si.

“Então, capitão? A escrever uma carta a uma demoiselle, é? Ergueu a cabeça e reconheceu o agora coronel Eugénio Mardel, o homem que comandara a Brigada do Minho durante a grande batalha. Levantou-se num salto, um enorme sorriso no rosto.

“Meu comandante”, exclamou, fazendo continência. “Bons olhos o vejam” Mardel estendeu a mão, informal.

“Como está, capitão? Então como foi a sua passagem pela Alemanha, hã? Os boches trataram-no bem? “

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Apertaram as mãos com vigor.

“Cinco estrelas, meu comandante. Cinco estrelas. Até distribuíam caviar de aperitivo e champagne para matar a sede. Mardel riu-se.

“Imagino.

“O que está o senhor comandante a fazer aqui no Pópulo? “ “Olhe, vim visitar os regimentos da brigada, uma espécie de passeio da saudade, percebe?“

“Ah, muito bem, muito bem”

“Você já almoçou? “

“Não, ainda não. Mas confesso que já estou cá com uma traça.“

“Então venha daí comigo. Há por aqui alguma tasca de jeito.

“Temos o restaurante do hotel, do outro lado do largo.”

“Come-se bem? “

“Melhor do que nas trinchas, meu comandante“

Abandonaram as instalações do Pópulo e foram almoçar juntos ao restau-rante do Grande Hotel Maia, mesmo em frente ao quartel, no outro lado do Campo do Conde Agrolongo. Pediram umas iscas de fígado à moda de Braga e mergulharam nas memórias do passado. A pedido de Mardel, Afonso relatou tudo o que lhe acontecera desde o dia da batalha. Quando concluiu o relato, o coronel manteve-se silencioso, o olhar ausente.

“Em que pensa, meu comandante?“

Mardel pigarreou.

“Questiono-me se tudo isto valeu a pena”, desabafou. “Cumprimos o dever, é certo, mas será que serviu para alguma coisa?”

Afonso fitou-o nos olhos.

“A guerra é feita por jovens, que se matam para glória de velhos. Para os jovens, claro que não valeu a pena. Para os velhos... “

A frase ficou em suspenso e foi Mardel quem a concluiu. “Para os velhos ficam glórias que não merecem”, disse. “Eu sei. “ Fez uma careta. “Sabe, capitão Brandão, apenas seis batalhões foram condecorados por bravura em combate durante o 9 de Abril. Nesse número contavam-se os nossos quatro batalhões da Brigada do Minho, mais os dois batalhões transmontanos, Infantaria 10, de Bragança, que combateu à direita de Ferme du Bois, e Infantaria 13, de Vila Real, que resistiu em Lacouture.

“O segundo comandante do 13, o major Mascarenhas, é meu amigo dos tempos da Escola do Exército. “

“Ah sim? Pois, olhe, o seu amigo foi um bravo. “

“Eu sei. “

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“Bem, isto para dizer que só os minhotos e os transmontanos combateram. Os restantes batalhões, incluindo todos os da Brigada de Lisboa, mais os algarvios do 4 e os alentejanos do 11 e do 17, cavaram perante o inimigo ou renderam-se quase sem oferecerem resistência e não foram distinguidos. “

Afonso franziu o sobrolho.

“Isso é curioso”, comentou com lentidão. “Será que o pessoal do Norte é mais valente do que o do Sul? “

“Não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certeira. Penso que a verdadeira questão é saber se o pessoal do campo é mais bravo do que o das cidades. “ Mardel passou a mão pelo cabelo. “Sabe, capitão Brandão, não há guerreiro mais temível do que o agricultor. A malta do campo está habituada à dureza da vida, ao trabalho na terra, às contrariedades impostas pela natureza, e não se impressiona facilmente com as dificuldades da guerra. São tesos p'ra caraças! Já os galrichos das cidades são o que se sabe, querem é regabofe e fadinho, gajas e boa vida, bola e paparoca na mesa. Quando a coisa aquece e dá para o torto, cavam todos “

“Isso pode explicar o comportamento dos lisboetas, não digo que não. Mas e os alentejanos e os algarvios? “

“Confesso que não encontro explicação para esses. Dizem-me que eles têm uma natureza mais indolente, mas tenho dúvidas de que tenha sido a indo-lência que os pôs no cavanço. Até porque o Wellington tinha unidades algarvias e fartava-se de as gabar. “Bem, não interessa”, exclamou Afonso, fazendo um gesto impaciente com a mão. “O que é facto é que fomos a única brigada que resistiu em bloco. Mas de que serviu isso? “

“De nada, acho eu”, suspirou Mardel. Encolheu os ombros. “De nada. Morreram quatrocentos portugueses nessa batalha e mais de seis mil foram feitos prisioneiros. Se formos a ver bem, os mais espertos até foram os lisboetas, que cavaram e andam agora a passear com as mulheres pelo Rossio e pela Rotunda, vivinhos da silva. Nós e os transmontanos, que demos luta, nós é que nos tramámos, em vez de estarmos a saborear a vida, andamos a lamentar os mortos e a consolar as viúvas. E o trágico, meu caro capitão, o trágico é que o sacrifício dos que combateram foi em vão. Os boches entraram pelas nossas linhas como um furacão, foram por ali fora, os bifes viram-se aflitos para os travarem e a situação tornou-se de tal modo crítica para os aliados que os camones chegaram a emitir uma ordem a dizer às tropas para que morressem onde estavam. Você imagina o que isso é, capitão Brandão, receber uma ordem para morrermos onde estamos?“ O capitão abanou a cabeça.

“Ainda bem que nunca recebemos uma ordem dessas... “

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Mardel fez um silêncio pensativo.

“Aí é que você se engana”, disse finalmente. “Essa ordem também nos foi dada. “

“A nós, portugueses? “

“Afirmativo. “

“Para morrermos onde estávamos? “

“Afirmativo. “

“Essa ordem foi dada pelos bifes? “

“Afirmativo. “

“Durante a batalha? “

“Antes da batalha. “