Afonso olhou para a casa de pedra que lhe foi indicada. Parecia- lhe uma versão minhota dos pardieiros da Carrachana, claramente partilhava com o antigo cabo a mesma origem humilde. Desmontou, amarrou o cavalo a uma árvore e deu uns passos pelo caminho de cabras até chegar diante da casa. A porta de madeira tosca estava entreaberta e o capitão entrou, hesitante.
“Está aqui alguém? “, chamou.
Ouviu o som de um talher a bater na porcelana e uma tosse cavada. Olhou na direcção do ruído. Um enorme vulto encontrava-se na penumbra, sentado à mesa e debruçado sobre uma tigela. Não se lhe via o rosto, mas Afonso reconheceu-o. O vulto ficou momentaneamente paralisado e, ao fim de um longo e silencioso segundo, ergueu-se com lentidão.
“Meu capitão.“
Os dois homens aproximaram-se e estacaram um diante do outro, meio sem jeito. Já não se viam havia quatro anos, desde que os alemães os tinham separado em Illies.
Abraçaram-se finalmente. Abraçaram-se com força, como irmãos, como velhos amigos que as circunstâncias da vida tinham afastado, como companheiros de estrada que se reencontravam após uma longa e difícil jornada.
“Sente-se aqui, sente-se aqui”, disse Matias, puxando Afonso para a mesa. O capitão acomodou-se e o antigo cabo foi buscar uma outra tigela de sopa. “É uma canjinha de sonho, meu capitão. Se o Baltazar aqui estivesse, chamava-lhe uma categoria. “ Tossiu. “Foi a minha Francisca que a fez, ora prove lá. “ Afonso engoliu uma colher e piscou o olho.
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“Está boa. “
“Está, não está? A minha Francisca é uma grande cozinheira lá isso é. Pena que não esteja aqui, foi ali ao rio lavar a roupa e pô-la a abelar. Mas já volta. “ Tossiu. “Ela era a minha namorada sabe? Quando voltei da Alemanha, pensei cá para mim: Ó Matias, a moça é séria e honesta, não é nenhuma sansardo-ninha, não é nenhuma rifeira, é boa de verdade, casa-te com ela, anda.
Tossiu outra vez, desta feita prolongadamente.
“Isso está mal”, notou Afonso com preocupação.
Reconhecera aquela tosse e sabia que não era de bom agoiro.
Matias ficara rubro de tanto tossir, mas acabou por recuperar o fôlego.
“São a merda dos gases, meu capitão.“ Tossiu novamente. “Os boches ainda me estão a matar com os gases que me meteram no corpo. Até sinto o líquido a escorrer cá dentro, no peito. “ Respirou fundo, para demonstrar o que dizia, e, de facto, os pulmões pareciam assobiar. “Os gases estão a fazer aquilo que as costureiras e abóboras não conseguiram nas trinchas, estão-me a dar cabo do canastro “ Sorriu com tristeza. “Era estranha aquela vida nas trinchas, não era? A morte perseguia-nos todos os dias, cheirava-nos, roçava-nos, mas, sabe, eu sempre tive em mim a vontade de viver”
“Você era um optimista”, considerou Afonso. “Havia uns que achavam que iam morrer, passavam a vida à espera da desgraça, tudo os deitava abaixo, viviam invadidos de maus pressentimentos, eram verdadeiras aves agoirentas. O Manápulas era assim... “
“E depois havia os outros, os tipos como você, aqueles que tornavam grandes as mais minúsculas coisas, saboreavam uma pausa, procuravam a felicidade nos pequenos nadas, num naco de pão, num rouxinol que cantava, num raio de Sol capaz de vencer aquele sombrio manto de nuvens cinzentas “
Um novo acesso de tosse encheu a sala. Matias respirou fundo e engoliu em seco.
“Sabe, só era possível viver ali se conseguíssemos ignorar o que aquilo tinha de mau, se conseguíssemos erguer um muro que nos isolasse de toda aquela desgraça. “ Matias tossiu. “Lembra-se, meu capitão, da indiferença com que olhávamos para um morto ou para um corpo mutilado? Isso era o muro que nos protegia. Tanto nos esgotámos a sofrer por nós que já não conse-guíamos sofrer por eles. Essa é que era a verdade, os mortos tornaram-se-nos indiferentes.“
“Excepto os camaradas”, atalhou Afonso.
“Excepto os maradas”, confirmou o antigo cabo. Tossiu. “Os maradas eram a melhor coisa daquela merda toda. Só eles contavam. “ Tossiu nova-mente. “Qual pátria, qual porra! Era pelos maradas que eu lutava. Manducávamos juntos, dormíamos juntos, 463
sofríamos juntos, éramos amigos, irmãos, tudo. Foi ali na guerra que eu verdadeiramente conheci os homens, conheci-os à séria, no bom e no mau, mas sobretudo no bom, na entreajuda, na amizade, nas pequenas coisas e nos grandes gestos.“ Baixou a cabeça. “O
proble-ma era quando morriam, isso era insuportável. “ Fitou Afonso. “Sabe que eu fiz uma peregrinação aqui pelo Minho para visitar as famílias dos maradas do meu pelotão, os maradas caídos em França? É verdade, fiz isso. Foi duro, foi xuega para caramba. Fui a Barcelos falar com a mãe do Vicente Manápulas, dei um salto a Gondizalves para ver os pais e os irmãos do Abel Lingrinhas e viajei até ao Gerês, até Pitões das Júnias, para conhecer a mulher e os filhos do Baltazar Velho. E aqui ao lado, em Palmeira, está a mulher e o filho do Daniel Beato, um marada que o capitão não conheceu, mas que foi decapitado por uma granada “
“Por que fizeste isso? “
Matias suspirou.
“Remorsos, acho eu”, disse. “Sabe que eu sonho muitas vezes com os maradas? O
que é engraçado é que eles nunca estão mortos. Sonho que fazemos as coisas do costume, andamos a matar ratos, a abrir drenos, a contar anedotas, todos armados em ribaldeiros.
Quando se passam duas semanas sem sonhar com eles, sinto saudades e quero sonhar outra vez. “ Tossiu. “Estranho, não é? “
“Isso é a guerra que continua na nossa cabeça. “ “Talvez. Mas, no meio disto tudo, meu capitão, há uma coisa que não compreendo, que não aceito. “ Tossiu ainda. “Sabe o que é? “
“O quê?”
“Não percebo por que sobrevivi. Não entendo, não concebo por que razão morreram eles todos e eu vivi. O que fiz eu de especial para viver? Qual o sentido de ter escapado? Porquê eu? Não percebo, não percebo. “ Baixou a voz. “Sinto-me culpado, agónico, anelante, é como se os tivesse traído, como se os tivesse abandonado, como se não os merecesse. Eles lutaram até à morte e eu rendi-me, não tive coragem de ir até ao fim, sobrevivi sem os salvar, amaldiçoo-me todos os dias por isso. “
“Também penso nisso muitas vezes”, confessou Afonso. “Mas a verdade é que, naquela altura, naquelas circunstâncias, não tínhamos alternativas. O que podíamos nós fazer? Deixarmo-nos abater como cães? “
Matias mirou o infinito, irremediavelmente perdido na sua batalha interior.
“Sabe, meu capitão, descobri que o mais duro não é fazer a guerra”, mur-murou o antigo cabo. “O mais difícil é sobreviver a ela, é viver com ela depois de ter vivido nela.
Percebe o que eu quero dizer?”
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Afonso respirou fundo.
“Então não percebo, Matias? Todas as noites sonho com isso. “ Fez uma pausa.
“Nem sei mesmo se sobrevivi. Olha, por exemplo, às vezes sonho que estou nas trinchas rodeado de mortos, viro um corpo para cima para lhe ver a cara e descubro que o cadáver sou eu. “ Estremeceu, arrepiado com o pensamento.
“Levei muito tempo a perceber este sonho, mas acho que já entendi. Ele significa que uma parte de mim morreu nas trinchas e que estou de luto pela minha própria morte.“
“É isso mesmo, meu capitão. Estamos de luto por nós mesmos. “ Suspirou. “Sabe, quando andamos aos tiros, as coisas acontecem e nós nem damos por isso, ou não ligamos, continuamos a agir sem pensarmos, mecanicamente, amanhã é um novo dia, há que seguir em frente “ Fez uma pausa e olhou para a mão, olhou-a mas não a via, estava absorto no seu raciocínio. “Agora, quando se acaba a guerra, quando ela acaba, meu capitão, a coisa começa logo cá dentro, a moer, a moer, a moer sem descanso. Bateu com o indicador na testa. “Parece que não, mas fica cá tudo, aqui na tola, para depois ser digerido, devagar, devagar. “ Nova pausa. “Olhe, a morte do Lingrinhas, o senhor não assistiu, mas foi uma coisa... nem sei como dizer. Nós estávamos a retirar da primeira linha, ele foi apanhado por uma costureira boche e ficou ali, no meio da Tilleloy, com um buraco na garganta, a asfixiar, a bombar. O Manápulas tentou ajudá-lo, tentou ir lá, e sabe o que fiz eu? Hã?