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“C'est moi. Finalmente. “

O velho olhou-o com desconfiança.

“Você é mesmo o capitão Alphonse? “

“Sim, sou eu. “ “De Portugal? “

“Sim, sim, sou eu. “

O velho parecia atrapalhado.

“Zut alors! “, exclamou. “Mas eu recebi uma carta há dez anos, creio que da sua mãe, a dizer que o senhor tinha morrido. “ Hesitou. “Ela até me pediu para não voltar a escrever. “

Foi a vez de Afonso se surpreender. Maldita Isilda, pensou. Não lhe escapou nada.

Previu tudo, o diabo da velha. Que arda no inferno.

“Monsieur”, começou por dizer. “Essa carta que lhe remeteram era falsa e foi-lhe enviada para manter escondido de mim o segredo da existência da minha filha. De resto, só no mês passado tive acesso à carta que o senhor me enviou, há dez anos, a dar conta do que acontecera, razão pela qual só hoje aqui estou. “

O velho mirou-o, digerindo com dificuldade o que lhe estava a ser dito, mas decidiu que o português era sincero e abriu-se num grande sorriso.

“Capitão Alphonse, não percebo nada dessa história, mas não faz mal, ainda bem que está vivo. Seja bem-vindo à casa de Agnès. “

Afonso subiu o degrau e entrou na casa.

“A minha filha está?”

“Marianne? “

“Sim. “

O pai de Agnès virou-se para o fundo do corredor, onde se via uma luz.

“Marianne! “, gritou. “Marianne! Viens ici! “

Ouviu-se uma voz melosa lá ao fundo.

“ Oui papy.”

“Viens ici, tout de suite!

Uma figurinha frágil, de menina, apareceu no corredor e estacou quando viu um estranho ao pé do avô. Afonso olhou- a e reconheceu aqueles cabelos castanhos 475

encaracolados, aqueles olhos verdes adocicados, aquela figura magri-nha de menina bonita.

Abriu os braços na sua direcção. Ela viu-lhe lágrimas nos olhos, o avô também se comovia atrás dele, mas foi sobretudo o que o estranho dizia, a voz embargada e carregada de emoção, a voz que a acariciava com as palavras que só em sonhos fantasiara ouvir, foi sobretudo aquela simples e poderosa frase que lhe tocou na alma e lhe arrebatou o coração.

“Ma fille, ma petite fille. “

Marianne ficou a estudá-lo, hesitante, receando acreditar. Deu um passo em frente, a medo, depois outro e outro ainda, começou a andar e o andar transformou-se em corrida, correu para ele como se sempre o tivesse conhecido, ninguém lhe disse que era ele mas ela soube-o, talvez fosse desejo, talvez fantasia, talvez aquela recusa infantil em acreditar que o papá tinha ido para o céu, o certo é que ela o reconheceu, reconheceu-o e correu até ele, até o envolver num longo e inesquecível abraço. Intenso. Como um braseiro que queima, como uma paixão que asfixia, como o Sol que nos encandeia, era intenso aquele abraço entre o pai e a filha. E, enquanto apertava a sua menina, os olhos turvos e um nó na garganta, sentindo aquele pequeno corpo a anichar-se no seu, Afonso lembrou-se inesperadamente do padre Nunes, não sabia porquê mas lembrou-se do velho mestre do seminário, interrogou-se se aquele instante não estaria previsto desde o amanhecer dos tempos, se a sua vida e se aquele encontro não obedeceriam a um estranho e misterioso desígnio, se tudo aquilo não estava afinal predestinado. Mas duvidou. Talvez não. Talvez estivesse apenas a tentar fazer sentido do caos, a procurar dar significado à vida, a esforçar-se por atribuir uma razão a tudo o que lhe sucedera, quando, feitas as contas, não há verdadeiramente um sentido nem um significado, as coisas são o que são e acontecem como acontecem, acontecem com simplicidade, com a naturalidade daquele abraço do capitão à sua filha perdida, daquele murmúrio de voz embargada que lhe brotava dos lábios e era repetidamente soprado aos ouvidos da menina que o enlaçava pelo pescoço.

“Ma petite fille. “

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Nota final

Tratando-se, é certo, de uma obra de ficção, este romance procura reproduzir factos históricos ocorridos na Flandres em 1917 e 1918. As personagens centrais são criações do autor, embora as situações por elas vividas sejam inspiradas em acontecimentos e episódios que efectivamente se reprodu-ziram. Em alguns casos, e para benefício da narrativa, esses acontecimentos foram comprimidos no tempo ou adaptados ficcionalmente. A reunião de Mons, a 11 de Novembro de 1917, ocorreu realmente, embora o palco não tenha sido a Mairie. Foi aí que começou a ser delineada a Operação Georgette, o plano de ataque às forças portuguesas, e os diálogos reproduzem os raciocínios efectivamente desenvolvidos pelo Alto Comando alemão nessa e em reuniões subsequentes. Os raides descritos no livro foram de facto executados, designadamente os de 22 de Novembro de 1917 e 9 de Março de 1918, para já não falar nos acontecimentos do Natal de 1917 e, evidentemente, na grande batalha de 9 de Abril de 1918, quando quatro divisões alemãs atacaram a única divisão portuguesa que defendia a linha naquele sector.

Para benefício da narrativa, contudo, foram alterados alguns pormenores. Os nomes das ruas e trincheiras de Fauquissart, Neuve Chapelle e Ferme du Bois estão correctamente reproduzidos. Várias personagens são reais, desde os altos comandos portugueses, britânicos e alemães até figuras como o então tenente-coronel Eugénio Mardel, o major Montalvão e a maior parte das perso-nagens que resistiram em Lacouture e ainda o farmacêutico Francisco Barbosa, o professor Manoel Ferreira ou o empregado da farmácia Franco que jogava na equipa do Grupo Sport Lisboa. O texto da tabuleta de St. Venant com o “Avisa” sobre o uso de latrinas é verdadeiro, tal como o da carta em francês de um soldado ao irmão e todas as citações de jornais e relatórios, mais o jargão e o calão das trincheiras.

Para que este romance fosse possível tornou-se necessário efectuar um profundo trabalho de pesquisa histórica. Consultei milhares de documentos do Arquivo Histórico-Militar e da Biblioteca Nacional e centenas de livros sobre os mais variados temas, desde a guerra até matérias de mera referência da época, como obras sobre moda, fardas militares, mobiliário, electricidade, utensílios de uso corrente, produtos de consumo, comboios, automóveis, artes, filosofia, medicina, e ainda postais ilustrados e anuários comerciais com as mais variadas informações úteis, incluindo horários de diligências e comboios, preços de 477

bilhetes de caleches, percursos ferroviários, estradas existentes na altura, feiras, restaurantes, hotéis, pastelarias, padarias, jornais, ruas, etc.

Na verdade, deitei a mão a tudo o que pudesse ajudar-me a situar a época e a reproduzir o espírito do tempo, ao mesmo tempo que procurava evitar os sempre enervantes anacronismos. Seria demasiado fastidioso enumerar todas as obras consultadas, pelo que me limitarei ao estritamente essencial. Entre as fontes bibliográficas mais importantes sobre o conflito de 1914-1918, destaque para os relatos feitos por militares que participaram na guerra e publicados nos livros A Batalha do Lys, do general Gomes da Costa; Livro da Guerra de Portu-gal na Flandres, do capitão David Magno; O Soldado-Saudade e Ao Parapeito, do tenente Pina de Morais; A Malta das Trincheiras, do capitão, dramaturgo, jornalista e humorista André Brun; Os Portugueses na Flandres, do tenente-coronel Fernando Freiria; A Brigada do Minho na Flandres, do coronel Eugénio Mardel; João Ninguém, Soldado da Grande Guerra, do capitão Menezes Ferreira; O Bom Humor no C. E. P. do major Mário Affonso de Carvalho; Good-bye to All That, do capitão e poeta Robert Graves; e War Letters of Fallen Englishmen, de Laurence Housman.