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Ao chegar o Verão de 1904, o padre Álvaro percebeu que lhe começavam a faltar respostas e considerou que o seu pupilo, com catorze anos acabados de completar, já se encontrava apto para entrar no seminário maior. Numa amena manhã de Julho, depois de passar pela Rua Nova de Sousa para tomar um café na recém-inaugurada A Brazileira, o 49

pároco levou-o ao seu amigo D. João Basílio Crisóstomo, vice-reitor do Seminário Conciliar de São Pedro e São Paulo. Era o único seminário de Braga e estava situado num pacato largo junto à Porta de São Thiago, no sector sul das antigas muralhas da cidade. Ao chegar ao largo, Afonso deteve-se perante o seminário, um edifício branco e comprido, e olhou para o monumento à esquerda, quase encostado ao seminário, tratava-se de Nossa Senhora da Torre, a alta torre medieval que vigiava a Porta de São Thiago. O largo encontrava-se abundantemente arborizado e era ornamentado por um chafariz com uma cruz arcebispal no topo, símbolo que marcava todos os monumentos mandados erguer pelo arcebispo. Havia ainda um quiosque e uma outra pequena construção cilíndrica na esquina.

“É um urinol público”, esclareceu o padre, respondendo ao olhar inquisitivo do seu protegido. “Estás aflito? “

O rapaz abanou a cabeça e prosseguiram em direcção à porta.

Subiram os dois a curta escadaria empedrada da entrada, as paredes decoradas com azulejos azuis reproduzindo vasos com flores e desenhos geométricos azuis, brancos e amarelos, e cruzaram os claustros internos, o olhar atraido pelas austeras colunas de pedra que cercavam um pequeno jardim interior. Os passos ecoavam ruidosamente no soalho de pedra, quebrando a placidez que enchia os corredores, e o ar revelava-se impregnado de um aroma indefinido, límpido e suave. Ascenderam ao primeiro piso e foram até ao gabinete do vice-reitor D. Crisóstomo recebeu-os com um sorriso beatífico.

Então, meu filho, queres ser padre?“ perguntou o anfitrião a Afonso em tom paternal, depois das cortesias habituais.

“Sim, senhor vice-reitor”

Mas ainda és um bocado novo para isto.“

Afonso ficou mudo. Estava ali porque o tinham mandado. O padre Álvaro respondeu em seu lugar.

“D. Crisóstomo, o rapaz é dotado. “

“Como assim “

Eu tinha planeado tê-lo como acólito mais um ano ou dois mas ele mostrou grande interesse e vocação e não vejo necessidade de o manter afastado do seminário só porque ainda é novo. “

O vice-reitor mirou Afonso, pensativo.

“Por que queres ser padre? “

“Não sei, senhor vice-reitor” murmurou o rapaz, baixando a cabeça.

“Não sabes? “

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Afonso hesitou. Sentia-se intimidado, estava habituado a discutir aquelas coisas só com o padre Álvaro e o vice-reitor deixava-o pouco à vontade. Olhou furtivamente para o pároco e reparou que ele, com um subtil gesto com a cabeça, o encorajava a falar. Afonso encheu-se de coragem, levantou a cabeça e fitou o vice-reitor com ar de desafio.

“Quero descobrir a verdade. “

“A verdade? A verdade de quê? “

“A verdade de tudo. Do mundo, das coisas dos homens, da vida.” D. Basílio Crisóstomo recostou-se na cadeira e sorriu, agradado.

“Muito bem, vieste ao sítio certo”, exclamou, balouçando afirmativamente a cabeça, em sinal de aprovação. Voltou-se para o padre Álvaro. “Vou ordenar que se iniciem quanto antes as inquirições de genere ao teu pupilo “

Os serviços do seminário começaram dias depois o inquérito a Afonso, averiguando a sua família, o passado, os hábitos de vida, o perfil e os interesses do candidato. Os estatutos do seminário, redigidos em 1620 e previamente consultados pelo padre Álvaro, previam como condição que se garantisse que os candidatos eram “christãos velhos inteiros, sem raça de judeus, mouros, nem outros infiéis”, único requisito que agora era negligenciado, por anacrónico. O padre Álvaro serviu de testemunha e o seu protegido, apesar de ser considerado um pouco novo de mais para frequentar o seminário maior, acabou por ser aceite. Havia precedentes de crianças que entravam no seminário maior com doze e treze anos, os próprios estatutos estabeleciam que os seminaristas “seram ao menos de doze annos”, pelo que a inscrição daquele rapaz de catorze anos, embora menos usual, nada tinha de extraordinário.

Afonso entrou no Seminário dos Apóstolos São Pedro e São Paulo no Outono de 1904. Tudo possuía aspecto antigo, austero e solene, uma impressão adequada à história do seminário. A instituição remontava a 1572, quando, na sequência do Concílio de Trento, foi aberto o Seminário de São Pedro, a funcionar no Campo da Vinha, em pleno centro de Braga. Parte das aulas, no entanto, era ministrada num vasto edifício junto à Porta de São Thiago, o Colégio de São Paulo, gerido pelos jesuítas. Os jesuítas foram, todavia, expulsos em 1759, e o edifício ficou nas mãos de freiras, até que, em 1881, o seminário foi para aí transferido, incorporando-se São Paulo no nome da instituição.

O novo seminarista foi instalado na sua cela, um pequeno quarto esparta-namente decorado e com um certo cheiro a bafio.

Tinha uma cama encostada à parede, uma mesa com gavetas para a roupa, uma vela, um candeeiro alimentado a petróleo, um banco, uma vassoura, um bacio, um sabão, uma toalha branca e um balde com água. A janelinha dava para um pátio ajardinado com os 51

ramos e as folhas de um vigoroso carvalho adulto a ocuparem parte da vista, viam-se os galhos a serem remexidos pelo inquieto adejar de asas dos pardais, o melódico pipilar dos pássaros enchia então o pátio e inundava o quarto de deliciosas sonoridades musicais.

Colocou a mala sobre a cama, abriu-a e arrumou a roupa nas poeirentas gavetas da mesa.

Só eram autorizadas roupas escuras, de modo que Afonso levou dois fatos, um preto e outro cinzento, ambos oferecidos pelo padre Álvaro. Tinha também cuecas meias pretas e ceroulas, peças de vestuário que jamais conhe-cera em Rio Maior e de que agora não prescindia e que arrumou com o resto. Quanto a sapatos, só possuía o par que trazia calçado, adquirido na Sapataria Celestino Vidal, na Rua do Souto.

A rotina da vida no seminário ficou logo estabelecida na manhã seguinte. Afonso foi acordado pelo som estridente de uma campainha tocada a cordel e levada pelos corredores.

Eram seis e meia da manhã. A tremer de frio, saltou da cama, urinou para o bacio e lavou furtivamente as mãos e a cara com a água gelada do balde. Vestiu o fato preto, fez a cama e varreu a cela. Perto das sete saiu para o corredor com o bacio, foi deitar a urina na zona das latrinas, regressou à cela para guardar o bacio e voltou a sair, acompanhando os restantes seminaristas em direcção à capela, para as orações da manhã. A missa foi celebrada pelo vice-reitor nos termos normais em qualquer igreja, isto é, em latim e de costas voltadas para os fiéis. O altar estava virado para oriente, como é habitual nas igrejas, e os celebrantes rezavam sempre em direcção a levante porque se acreditava que era daí que se devia esperar a salvação, afinal de contas foi lá que Jesus nasceu. A missa durou meia hora, finda a qual seguiram para o refeitório uns seminaristas conversando em sussurros pelos corredores, o que impressionou Afonso. O refeitório era um grande salão com muitas mesas de madeira, quatro cadeiras por mesa. Os seminaristas espalharam- se pelas mesas e o vice-reitor foi ocupar o seu lugar. O pão, a broa e as papas de milho foram colocados nas mesas, João Basílio Crisóstomo ergueu-se e todos o imitaram.