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“Benedic Domine nos, et haec tua dona quae de tua largitate sumus sumpturi, per Christhum Dominum nostrum”, proclamou em latim, implorando a Deus a bênção para os alimentos que estavam na mesa.

“Jube Domine benedicere”, entoou um diácono, prosseguindo o ritual.

“In nomine Patri et Filius et Spiritui Sancto”, concluiu o vice- reitor, benzendo os presentes e os alimentos e fazendo sinal aos seminaristas para começarem a comer.

O pequeno-almoço foi tomado em absoluto silêncio, Afonso rapidamente iria perceber que era essa a regra em todas as refeições. Às oito recolheram aos aposentos, chegara a hora de reverem as lições. O padre Álvaro tinha avisado Afonso de que deveria aproveitar esta pausa para passar os olhos pelo latim, uma vez que era provável que fossem 52

testar os seus conhecimentos na língua romana. Por esta altura já o jovem percebera que o latim podia ser uma língua morta em todo o mundo, mas naquele seminário estava talvez mais viva do que o português. Encheu-se de coragem e, fechado na sua cela, pôs-se a recitar declinações em voz baixa. Meia hora mais tarde, a campainha assinalou a chamada à portaria. Afonso seguiu para o local, onde o vice-reitor aguardava os seminaristas para os questionar sobre as matérias de estudo. O novo estudante não foi poupado, com o vice-reitor a testar minuciosamente os seus conheci-mentos de latim, queria saber o que valia a mais recente aquisição do seminário. Tomado pela ansiedade e com a voz trémula e submissa, Afonso foi gaguejando as respostas. As aulas do padre Álvaro eram uma boa base, mas o latim que aprendera na paróquia de São Vicente revelou-se claramente insuficiente para as necessidades curriculares e D. Basílio Crisóstomo tornou-lhe claro que esperava que ele aprendesse muito mais. Afonso concluiu a sessão da portaria exausto e acabrunhado, imaginando que todos se riam dele.

As aulas começaram às nove da manhã. A sua primeira disciplina foi Casuística, ministrada por um mestre gordo e bonacheirão, na verdade um padre da diocese de Braga que ia leccionar ao seminário. O primeiro ano do seminário maior era dominado pelos estudos filosóficos, com Filosofia, Casuística e Retórica à cabeça, complementados por Gramática e Latim. Havia ainda um bónus fornecido pelo padre Ettori Fachetti, um italiano que viera para Braga aprender português, que era um poliglota notável e pôs os seus talentos ao serviço dos seminaristas, ensinando italiano, inglês, francês e alemão a quem o interpelasse. Vários estudantes inscreveram-se nas suas disciplinas, e Afonso, talvez mais pelo desejo de se sentir aceite e integrado, seguiu-lhes o exemplo e decidiu aprender tudo.

O segundo e terceiro anos do seminário concentravam-se sobretudo em teologia, os estudos a dividirem-se entre a História Eclesiástica, a Teologia Dogmática, a Teologia Moral, a Teologia Sacramental, o Direito Canónico, a Liturgia, a Hermenêutica e o Canto, para além, claro, das disciplinas de línguas estrangeiras do padre Fachetti e dos inevitáveis Latim e Gramática.

O almoço foi servido ao meio-dia. Tal como ao pequeno-almoço, a comida foi colocada imediatamente na mesa, mas ninguém tocou nela antes de o vice-reitor proferir em latim o pedido de bênção para a refeição. Quando terminou a oração, todos se sentaram e começaram a servir- se. Havia pão de trigo, broa, sopa de legumes, carne de vaca cozida, ovos cozidos e castanhas. Para beber tinham água. Comiam em silêncio, fazendo passarem por uns gestos para os outros o pão, a carne ou a água. A meio da refeição surgiu uma novidade em relação ao pequeno-almoço. Um seminarista com uns 53

dezasseis anos levantou-se da mesa e dirigiu-se ao púlpito do refeitório com um pequeno livro na mão. Abriu o livro numa página marcada e começou a ler uma assam da vida de São Francisco Xavier numa voz monocórdica.

Afonso sentiu que o rapaz não entendia o que lia, a entoação era ritmada e inexpressiva, o que dificultava a compreensão do texto. Nessas condições, a voz tornou-se mero ruído de fundo. O orador terminou a leitura quando chegaram as maçãs para a sobremesa e, pouco depois, o vice-reitor ergueu-se, obrigando todos a levantarem-se, conduziu uma oração final e deu o almoço por termi-nado.

Foram para o recreio. Afonso verificou que a maior parte dos seminaristas já se conhecia, formando grupos que se juntavam aqui e ali. O ambiente era amigável, mas o recém-chegado mostrava-se tímido e metido em si mesmo. Eram quase todos mais velhos, havia mesmo uns que já tinham uma barba macia a crescer, de modo que Afonso sentiu-se deslocado. Para não ficar sem nada para fazer, resolveu dar discretamente uns pontapés numa pequena pedra, fantasiando estar a jogar football no Campo Pequeno com a gloriosa camisola do Club Lisbonense. Imaginou que um dos carvalhos era uma baliza defendida por um player do Carcavellos Club, clube particularmente detestado por ser exclusivamente de estrangeiros e por ter sido o único que ganhou ao Club Lisbonense. Afonso mirou o carvalho e pontapeou suavemente a pedra, enganando o imaginário goal-keeper inglês.

Noutros instantes cruzou o pátio a transportar a pedra com toques curtos, fingindo que efectuava dribblings que deixavam os adversários por terra. Fazia-o como se estivesse a passear, procu-rando não dar nas vistas, percebia que andar ostensivamente aos pontapés a uma pedra durante o recreio poderia ser mal interpretado.

O som da campainha avisou-os de que estava terminado o recreio. Eram duas da tarde quando recolheram às celas para regressarem às matérias das aulas da manhã. Afonso passou parte da tarde a estudar Casuística e a outra parte às voltas com o malfadado Latim, que tanto o envergonhara durante a sessão na portaria. Às cinco e meia, a campainha chamou-os para a capelã e às seis e meia voltaram ao refeitório para a ceia silenciosa. A refeição terminou às sete e meia, altura em que seguiram para o recreio, e uma hora depois a campainha mandou-os novamente para as celas. Às nove da noite, e depois de preparar as coisas para o dia seguinte, Afonso fez uma derradeira visita às latrinas, voltou para a cela, meteu-se na cama, apagou o candeeiro a petróleo e adormeceu.

Os dias seguiram-se uns atrás dos outros nesta rotina, com poucas varia-ções, monótonos e repetitivos. As principais novidades relacionavam-se com os almoços e as ceias, onde os pratos iam variando. Umas vezes aparecia carne de vaca, outras carne de porco, outras carne de carneiro. Jamais foi servido peixe, o que deixou Afonso com 54

saudades de fazer com a língua uma limpeza às cabeças dos chicharros. Comiam-se galinhas, castanhas, batatas, açordas e sopas de legumes ou farinha de pão. Aos domingos era apresentada uma iguaria requintada, o arroz, e em dias de festa surgiam os doces, alguns de receitas conventuais. O vinho ficava igualmente reservado para ocasiões especiais, embora Afonso estranhasse o sabor do tinto. Em vez do macio vinho maduro a que estava habituado em Rio Maior, este revelava-se muito frutuoso. Explicaram-lhe que se tratava de tinto verde, um néctar que ele não conhecia e que era proveniente de várias zonas do Minho, como Ponte da Barca, Ponte de Lima e Melgaço, e ainda do vale do Sousa, na região do Douro.