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Ás quintas-feiras e domingos, os estudantes abandonavam o seminário e eram levados em passeio. Seguiam sisudos e compenetrados, aos pares em fila indiana, para périplos com o vice-reitor, que os conduzia a Montariol e ao Fraião. Quando o sol despontava especialmente bonito, iam até ao pórtico entre a capela da Agonia de Cristo no Jardim e a Capela da Última Ceia. Subiam o espectacular escadório do Bom Jesus, primeiro pela via-Sacra, com as capelas a representarem as catorze estações da Jesuz, depois pelo íngreme escadório dos Cinco Sentidos e, finalmente, já com a língua de fora e as pernas a pesarem como chumbo, arrastavam-se pelo escadório das Três Virtudes. Uma vez lá em cima, ofegantes e a transpirar, encostavam-se às paredes, sentavam-se no duro chão de granito e refrescavam-se na Fonte do Pelicano. Já mais recompostos, iam finalmente visitar a imponente Igreja do Bom Jesus, Braga a estender-se aos pés do santuário. Outras vezes, em vez de subirem o monte, desciam até desembocarem no rio Cávado, onde ficavam a brincar na água gelada. Uma vez por outra iam até à Capela de São Frutuoso de Montélios, uma relíquia do século VII, ou apanhavam a estrada para Barcelos e davam um salto ao Mosteiro de Tibães, um belo complexo com claustros e jardins erguido no século XI. O

objectivo declarado era o de os levar a apanharem ar puro e desentorpecerem as pernas, mas alguns mestres riam-se e sugeriam sub- repticiamente que aquela era antes uma artimanha para os estafar. O ponto alto da semana tornaram-se as visitas do padre Álvaro, sempre aos domingos de manhã. O pároco levava ao seu protegido uma mão-cheia de doces adquiridos na Pastelaria Suissa e ainda, atento aos interesses do rapaz, alguns exemplares do Tiro Civil, que arranjava na papelaria Cruz & Companhia, na Livraria Central ou que lhe eram especialmente remetidos de Lisboa. Foi desse modo que Afonso percebeu que o seu querido Football Club Lisbonense deixara de existir. Sentiu-se inexplicavelmente órfão e infeliz, as vitórias do clube alimentavam-lhe os sonhos e não podia conceber que aquelas cores que um dia vira brilhar alto no Campo Pequeno jamais voltariam a encher um campo.

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Passou uma semana de luto pelo desaparecimento do Club Lisbonense e só revelou os seus sentimentos a Américo, um seminarista gorducho, de quinze anos, com quem fizera amizade. Afonso ainda tentou ensinar-lhe a jogar football, mas os pontapés nas pedras não convenceram o redondo amigo, mais vocacionado para o ócio e para a gula. Américo era oriundo de Vinhais, em Trás-os-Montes, filho de comerciantes abastados que achavam que ter um padre na família era um sinal de distinção. Afonso divertia-se a olhar para Américo durante as refeições. O pequeno de Rio Maior, habituado aos manjares frugais da sua casa em Carrachana, onde uma simples cabeça de peixe servia de refeição, achava que os almoços e ceias no refeitório eram lautos banquetes, mas Américo, mimado pelos melhores pratos transmontanos, servidos em abundância na sua abastada casa de Vinhais, sofria horrivelmente com aquela dieta, que considerava mais adequada para tuberculosos e raquíticos, e passava os dias a suspirar pela sua terra.

O ano escolar terminou depressa e Afonso, agora com quinze anos, foi premiado com um suficient a Gramática, três cum laude designadamente a Latim, Casuística e Retórica, e um suma cum laude a Filosofia, para além de ser corrido a aprovators nas disciplinas de línguas estrangeiras do padre Fachetti. Já Américo, que se sentia tremendamente infeliz no seminário, foi varrido a suficient e teve mesmo dois non aprovatus a Retórica e a Casuística.

Afonso foi passar o Verão a Rio Maior e apresentou-se em casa impante de orgulho, nunca ninguém da família tinha ido tão longe nos estudos. Nos primeiros dias estranhou a casa da Carrachana, pareceu-lhe demasiado pobre e imunda. Ficou espantado por nunca antes se ter sentido incomodado com aquela miserável penúria, em boa verdade nem sequer alguma vez reparara nela, tinha nascido ali e a privação afigurava-se-lhe natural aceitou-a sempre como um facto da vida.

Cumpridor dos seus deveres de protegido, o jovem seminarista foi à Casa Pereira visitar dona Isilda, que lhe tinha dado esta oportunidade de estudar em Braga, mas, compenetrado no seu papel de futuro padre celibatário, não fez questão de ver Carolina, pormenor que encheu a viúva de satisfação. Dona Isilda concluiu que a estratégia de afastar o moço da filha estava a resultar e festejou essa vitória em privado com um cálice de vinho do Porto.

Afonso impressionou os pais pelo empenho que revelava nas orações e pelas maneiras recatadas com que se comportava. Além disso, por vezes brindava-os com surpreendentes tiradas em italiano, mas também em alemão, francês ou inglês, frases pomposas e verborreicas que serviam apenas para pavonear os conhecimentos que adquirira e estabelecer uma subtil superio-ridade sobre a família. Já o contrário, como seria de esperar, não se passava. O jovem sentia-se ligeiramente incomodado com a postura da 56

família, eram talvez os hábitos de higiene e as conversas que considerava pouco elevadas, só se falava nas colheitas, nos preços do mercado, na diarreia da vizinha, na forretice do senhor Ferreira e num problema na perna da burra. Mas o pior eram as bebedeiras do pai aos domingos à tarde, o senhor Rafael vinha da taberna do Silvestre a cantar aos altos berros e a caminhar de forma incerta, o que encheu Afonso de vergonha.

Foi por isso com alívio que o jovem seminarista regressou a Braga para prosseguir os estudos. A sua cela cheirava a mofo, é certo, mas era asseada e a vida no seminário revelava o que, para os padrões da Carrachana, se poderia considerar um ambiente de abundância e requinte. Afonso reencontrou Américo, que veio das férias ainda mais gorducho, e ambos se tornaram agora inseparáveis. No segundo ano, as aulas deixaram a filosofia e concentraram-se em matérias teológicas. Afonso embrenhou-se no estudo do divino ao ponto de, cheio de piedosa compaixão, lamentar a sorte dos que, por circunstâncias da vida que não controlavam, não tinham nascido num ambiente católico. Pois se o catolicismo era a verdadeira fé, então os hereges dos países do Norte estavam condenados às eternas chamas do inferno. Tudo, meditou o jovem, porque tinham lamentavelmente nascido no sítio errado. Não pôde deixar de sentir uma certa perplexidade por os protestantes teimarem em não verem a verdade. Não era óbvio que, pela sua grandeza e história, só em Roma estava o caminho da salvação? Não se tornava evidente que, pela sua bondade e majestade, era o Santo Padre o verdadeiro vigário do Senhor? Como poderiam aqueles povos, na sua cegueira e arrogante ambição, fechar os olhos à evidência? Isto para já não falar nos judeus, que não reconheciam o Novo Testamento e a palavra de Jesus, ou nos maometanos, que acrescentaram falsos profetas aos verdadeiros. E o que dizer daqueles outros povos que nem o Antigo Testamento reconheciam, como os hindus e os budistas?

Que muro de ignorância os mantinha cruelmente afastados da salvação? Afonso sentiu-se orgulhoso quando aprendeu o papel que a Igreja portuguesa desempenhou na propagação da fé no Brasil, em África, na Índia, na China, no Japão e nas ilhas Molucas e sentiu ganas de vir a ser um desses missionários que se tornaram confidentes do imperador em Pequim ou que acompanharam os bandeirantes na conversão dos selvagens no Brasil. A Índia portuguesa estava catolicizada e havia agora muito trabalho a fazer em África. O jovem seminarista começou a alimentar o secreto sonho de se tornar missionário e espalhar a verdadeira fé em locais remotos das Guinés, de Angola e de Moçambique, tendo confidenciado estes projectos apenas ao padre Fachetti e a Américo.