As aulas de Teologia Dogmática permitiram-lhe penetrar mais satisfato-riamente nos insondáveis mistérios de Deus e da vida. A disciplina era leccionada pelo padre Francisco Nunes, um inesperadamente liberal e pouco ortodoxo teólogo beirão que estudara Teologia 57
em Roma e fizera uma pós-graduação em Filosofia na Universidade de Heidelberga, na Alemanha. Afonso ainda não o sabia, mas, como resultado da sua curiosidade natural e da forma aberta e desempoeirada como o mestre abordava os problemas filosóficos, essas aulas abrir-lhe-iam surpreendentes janelas sobre o mundo. O padre Nunes era um homem magro e curvado, de olhos pequenos, barba rala e falinhas mansas, com duas características dominantes. A primeira é que ciciava a falar, os esses saíam-lhe em assobios sibilantes, e a outra vinha-lhe da paixão pelo latim, o que o levava a usar profusamente expressões proverbiais latinas na conversa. Ao mestre, Afonso remeteu as mesmas perguntas que formulara antes ao padre Állvaro, incluindo o problema do bem e do mal que está na base da moralidade judaicocristã. Seria o bem a antítese do mal ou não passariam ambos das duas faces da mesma moeda?
É verdade que, a fortiori, o que é bem para uns pode ser mal para outros”, concordou o padre Francisco Nunes, os esses de “uns”, “ser” e “outros” a saírem assobiados. “Se eu te ganhar um jogo de xadrez, isso é bom para mim e mau para ti. Dura sed lex. Muitas coisas na vida são também assim. “
“Mas, se Deus é bom, por que razão existe mal? Se Deus é omnipotente, por que motivo não arranjou um sistema diferente, um sistema em que o resultado do jogo de xadrez fosse bom para os dois jogadores? “, insistiu Afonso, já habituado aos esses assobiados.
“A resposta a essa pergunta, meu caro Afonso, foi dada há duzentos anos por um filósofo alemão”, retorquiu o professor. Voltou-se para o quadro e escreveu a giz
“Gottfried Leibniz”. “Leibniz observou ad litteram que o bem e o mal são inseparáveis porque cada um deles não tem sentido sem o outro”, disse ele, pronunciando “Laibnitsss”.
“O bem só tem valor se o mal for uma opção, se nos dedicarmos a ele porque o desejamos, não porque não temos alternativa. E esta dualidade bem-mal só é possível porque estamos a lidar com conceitos relacionados entre si e cuja adopção resulta de um acto de livre vontade. De alguma forma poderemos definir o bem como sendo um conjunto de regras e comportamentos que produzem bons resultados para cada pessoa e para a comunidade em geral e o mal como sendo regras e comportamentos que apre-sentam resultados negativos para o mesmo universo. É claro que, a priori, cada sociedade, ou religião, pode estabelecer regras e comportamentos diferentes e até antagónicos. Id est, acontece por vezes que uma coisa que é considerada boa por umas culturas é encarada como maligna por outras, e é por isso que temos de nos guiar pela palavra de Deus tal como ela foi imortalizada nas Sagradas Escrituras. São elas a alma mater da nossa moralidade, são elas o nosso guia para definirmos o bem e o mal, para estabelecermos quais os comportamentos e regras que 58
deveremos adoptar e quais os que deveremos rejeitar. No Genesis, a distinção do bem e do mal constitui o terceiro passo dado pelo homem, e é precisamente aí que começa a definição da nossa moralidade. “
“E qual é o principal comportamento ou regra que temos de adoptar para fazermos o bem? “, perguntou o aluno.
“O amor”, disse sem hesitar o padre Nunes. “Os judeus acreditavam no princípio de que o bem era praticado quando amámos o próximo, e isso está consagrado no Antigo Testamento. O problema é que os judeus achavam que eram o povo eleito, que Deus só os amava a eles. Cristo foi para além desta ideia, defendendo que Deus amava os judeus, sim, mas, magister dixit, também amava todos os outros povos, todos eram filhos de Deus, o amor divino era universal. De resto, já os gregos defendiam que os homens são todos irmãos, um conceito que Jesus incorporou no cristianismo. “ À noite, deitado na sua cela, Afonso matutava sobre estas ideias inquieto, lendo a Bíblia com redobrada atenção. Por vezes dava um salto à biblioteca do seminário e consultava textos de teologia, regressando às aulas do padre Nunes com novas dúvidas.
“O senhor padre mencionou na última aula que o bem e o mal só têm valor porque podemos optar entre eles”, observou o aluno quando voltou a Teologia Dogmática. “Mas estive a ler a Carta aos Romanos, de São Paulo, e ele escreveu aí que todos os homens são pecadores e que Deus escolhe quais são aqueles a quem vai conceder a Sua graça e salvar.
Essa escolha foi previamente efectuada por Deus, antes de o tempo ter começado, antes de o mundo ter sido feito.“
“E o que concluis dessas palavras, meu filho? “
“Concluo que Deus concede a Sua graça independentemente dos méritos dos que a recebem. Todos somos pecadores, cabe a Deus escolher arbitraria-mente quem vai ser salvo. E, como essa escolha foi efectuada antes ainda de o mundo ter sido feito, o que nós fizermos é irrelevante, Deus já fez as suas opções antes mesmo de praticarmos o bem ou o mal. Ou seja, o que quer que façamos não conta para nada, as coisas estão decididas antes mesmo de acontecerem. “
“Esse é precisamente, um ponto de divergência entre o catolicismo e o protestantismo”, comentou o padre Nunes afagando a barba rala. “É possível que, ao avançar com essa ideia da graça de Deus, São Paulo tenha levado o cristianismo para áreas onde talvez Jesus não tivesse ido. Outros santos contestaram o conceito, insistindo no princípio fundamental de que uma fé que não é consolidada por actos não tem valor. Sabes, o que se passa é que a Bíblia resulta de um conjunto de textos diferentes, que nós consideramos como sendo produto da palavra de Deus, mas a verdade é que eles foram 59
redigidos por homens. Isso significa que, até certo ponto, esses textos são interpretações humanas da vontade divina e, como tal, podem por vezes conter “ contradições, até mesmo um ou outro lapsus calami. “
“Mas qual é a resposta para este problema? “ “Não sei, teria de consultar Deus”, riu-se o professor. “Eu diria que talvez exista uma maneira de conciliar os dois pontos de vista.
Uns têm certamente razão quando defendem que é preciso praticar o bem para merecer um lugar no céu. Mas São Paulo preconiza outra verdade, a de que a bondade de Deus é ilimitada, mirabile dictu, e isso significa que todos podem ser perdoados, mesmo os que só fizeram o mal. Admito que haja aqui uma contradição, mas, à falta de melhor resposta, eu diria que, hic et nunc, os caminhos do Senhor são insondáveis. “ Afonso não ficou satisfeito com a forma como o padre Nunes não respon-deu à sua dúvida, mas percebeu que isso acontecia porque o professor não tinha realmente resposta.
Tal não o impediu de problematizar alguns aspectos do problema, como se tornara agora seu timbre.
“Mas como é possível que as coisas estejam decididas antes ainda de terem acontecido? “
“Tudo está predestinado. “
“Mas, se está predestinado, então é porque não há livre vontade. Ou seja, a opção pelo mal não é do homem, é de Deus. O padre Nunes suspirou. Que aluno difícil, pensou, a curva nas costas acentuando-se à medida que ganhava coragem para atacar mais aquele problema.