Выбрать главу

mas um dia verificou que os papéis de um irmão atribuíam a filiação a Mariana Silva André.

No meio de tudo isto a única certeza era a de que o nome próprio da mãe era Mariana.

O pai chamava-se Rafael Brandão Laureano, o que suscitava novo mistério. Pois, se o último nome era Laureano, por que razão dera aos filhos o apelido do meio, Brandão?

Igualmente aqui nunca houve respostas satisfatórias e o pai limitava-se a encolher os ombros quando interrogado sobre esta opção. Rafael Laureano era um homem alto, com um metro e setenta e cinco, estatura invulgar em Portugal, e profundamente religioso.

Tinha um rosto largo, rasgado por longas rugas que lhe nasciam do canto dos olhos miúdos, o abundante e rebelde cabelo grisalho parecia uma mão-cheia de palha branca plantada na cabeça. O senhor Rafael exercia a profissão de jornaleiro, mas, desenganem-se os menos esclarecidos, nada tinha a ver com jornais. Um jornaleiro era um homem que trabalhava no campo e era pago à jornada. Sendo jornaleiro, o pai de Afonso era pobre, mas não miserável. Possuía dois pequenos terrenos onde cultivava vinhas para produzir tinto, que vendia aos armazenistas de Rio Maior. O problema é que a produção não chegava para o sustento da família e, como tinha fama de bom agricultor, Rafael era frequentemente convidado pelos grandes proprietários ribatejanos para trabalhar à jornada nas suas terras.

Rafael e Mariana casaram muito cedo e tiveram o primeiro filho quando ainda eram adolescentes. Ele tinha quinze anos e ela catorze. Mariana deu à luz um belo rapaz, ao qual chamaram Manuel. Depois vieram a Jesuína, o António, o João e o Joaquim. Em 1889, na altura em que estava a cumprir serviço na Marinha de Guerra, António morreu, vítima de tuberculose. Mariana ficou desfeita e a dor encheu o lar. Rafael mergulhou numa depressão, tornou-se amargo, obcecado pela desgraça que se abatera sobre a família. Era normal naquele tempo morrerem muitas crianças, a maior parte das vezes ainda bebés, mas o António já não era um menino, era um homenzinho, tinha sonhos e projectos, era amado e admirado.

O pai deu consigo a sonhar todas as noites com a morte do filho. Sonhava que ele afinal não morrera, ou que ressuscitara, ou que conhecera um outro rapaz igualzinho ao seu António, ou que o chamava mas ele não o ouvia, ou que isto, ou que aquilo. De todas as vezes era um sonho diferente, frequentemente trágico, por vezes desesperado, raramente feliz. Houve um, porém, que o deixou muito impressionado. Numa noite abafada de Verão sonhou Rafael que se ajoelhara junto à campa do seu rapaz quando Deus Lhe apareceu em visão e disse que lhe tinha destinado cinco filhos. Se um morrera, outro teria de vir para o substituir. Quando Rafael despertou, a decisão estava tomada e Mariana foi compensada com um novo filho, era uma forma de fazer regressar a alegria a casa e de cumprir os 9

desígnios do Senhor. Foi assim que, no ano seguinte, Mariana, já com quarenta e cinco anos, deu à luz Afonso, o menino que veio para substituir António nas contas de Deus.

O benjamim da família cresceu habituado a um mundo em que todos os irmãos eram muito mais velhos do que ele. Manuel tinha trinta e um anos, já se casara e saíra de casa.

Tornara-se ferrador e fizera-se pai de uma menina dois anos mais velha do que o seu irmão mais novo. Depois vinha Jesuína, que casou quando Afonso era ainda pequeno. A sua primeira memória da irmã remonta a um momento doloroso na cozinha, Jesuína lavada em lágrimas de desespero pela morte do primeiro filho, a mãe a consolá- la, a cabeça da filha encostada ao ombro materno. Do terceiro irmão, António, aquele a quem afinal devia a vida, só restava uma grande fotografia pendurada numa parede da sala, o rapaz com a farda de marinheiro orgulhosamente ostentada. Os mais próximos eram João e Joaquim, ambos adolescentes, a trabalharem numa serração. O pequeno Afonso dormia com estes dois irmãos na mesma cama de latão, num quarto sem porta, a entrada protegida por uma cortina muito gasta. À medida que o mais novo ia crescendo, tornou-se evidente que não cabiam os três na mesma cama se continuassem deitados uns ao lado dos outros, e Afonso, que ficava sempre no meio, passou a dormir com a cabeça junto aos pés dos mais velhos.

As memórias de Afonso só começaram a tornar-se nítidas a partir dos seis anos. Foi nessa altura que parou de mamar no pão, à falta de chupeta mais adequada, embora ainda comesse as sopas de cavalo cansado, que se tornaram a sua dieta. Aos dois anos tinha deixado de mamar nos seios da mãe, porque o leite secara, e passara desde então a depender dessa mistura de pão e vinho tinto doméstico. Ao entrar na escola adquiriu maior consciência do mundo que o rodeava. Começou a notar as madeiras escuras e toscas que lhe mobilavam a casa e o permanente cheiro a porcos, estrume e mosto que lhe invadia o quarto. Os suínos eram criados numa pequena pocilga ao lado da casa e o seu odor propagava-se facilmente pelo ar. Não é que se importasse, ele que andava descalço por toda a parte, vestindo uns velhos e fedorentos trapos herdados dos irmãos.

Cedo começou Afonso a ajudar o pai, semeando melão, limpando as vinhas e enxofrando as cepas. As epidemias ameaçavam as vinhas havia mais de dez anos, iniciava-se então o falatório sobre um novo método para combater aquele mal, a sulfatação, mas, enquanto a novidade não chegava ao Ribatejo, terra remota e de vida árdua, tinha o senhor Rafael de contar unicamente com a protecção da Virgem. Naquele tempo circulava-se de carroça, embora Rafael Laureano se remediasse com uma burra que o auxiliava na lavoura.

Afonso aprendeu que a burra não era burra de todo, mostrava-se até esperta e desembaraçada. Era frequente ver o pai dar instruções ao animal.

10

“Vai para o Cidral!”, ordenava-lhe o senhor Rafael, abrindo o portão do quintal.

“Anda, vai”

A burra cruzava o portão e desaparecia vagarosamente pela poeirenta estrada de terra batida, seguida pelo cão da casa, o Bobby. Nessas alturas, Afonso acompanhava o pai numa volta pela vila, seguia-o como um rafeiro fiel, achava-o forte e sábio, com ele sentia-se bem, seguro e tranquilo. Quando, horas depois, chegavam os dois ao terreno da família no Cidral, encontravam a burra e o cão à sua espera.

“Bovi! Bovi!”, chamava o pai, incapaz de pronunciar correctamente o nome de Bobby. Abria os braços e abraçava o cão, que o recebia com sempre renovado entusiasmo, a cauda a abanar como um leque, saudando o dono como se não o visse havia dez anos.

“Ah, Bovi.”

A vida do senhor Rafael era dura. De segunda a sábado acordava às cinco da manhã, comia uma sopa ou um naco de pão com chouriço e ia trabalhar a terra. Almoçava às dez horas o farnel que a mulher lhe trazia num cesto e ao meio-dia vinha a merenda. A lavoura só terminava quando o Sol se punha ou quando dobravam os sinos do cemitério, pelas cinco da tarde.

“Olha as ave-marias!”, exclamava Rafael Laureano, limpando o suor da testa e erguendo-se para mirar o horizonte e escutar os sinos distantes. “Está na hora” Deitavam-se todos cedo, eram oito da noite quando o senhor Rafael mandava Afonso vestir o seu “pijeta”, apagava as candeias ateadas com azeite e mergulhava a casa na escuridão, era hora de dormir. Só aos domingos podia esta rotina ser alterada. No dia do Senhor acordavam cedo, como sempre, e vestiam as melhores roupas, melhores porque não estavam esfarrapadas. O banho era quase desconhecido, excepto no Verão, altura em que, uma vez por mês, toda a família ia lavar-se em animadas manhãs dominicais. Afonso não apreciava esses momentos. Encolhia o corpo franzino dentro de uma tina e sentia a água gelada despejada sobre si pela mãe. Depois de se vestirem, o senhor Rafael conduzia a família à missa para uma manhã de virtude, mas à tarde vinha o vício e o pecado. O pai ia com os irmãos para a taberna do Silvestre ou para a taberna do Corneta embebedar-se com tinto. Era conside-rado um “mau vinho” porque, quando embriagado, ficava de mau humor e não raras foram as vezes em que se envolveu em zaragatas disparatadas. Para controlar o problema, a senhora Mariana mandava Afonso acompanhar o pai com a missão de o trazer de volta tão cedo quanto possível, tarefa que o pequeno temia, o pai tornava-se irascível quando tocado pelo álcool e aquele rochedo de segurança transformava-se nesses momentos numa montanha ameaçadora, as mãos eram pedregulhos instáveis e imprevisíveis, reagia mal às suas súplicas e esbofeteava-o com violência.