Os jogos imaginários tornaram-se selvagens. Afonso corria furiosamente pelo pátio a dar toques em pedras e a pontapeá-las com inusitado vigor. Certo dia uma das pedras atingiu na cabeça um colega que estudava encostado ao tronco de um carvalho, e o profuso sangrar que lhe brotou do couro cabeludo levou o vice-reitor a convocar o jovem ao seu gabinete para lhe passar uma reprimenda. O eclesiasta disse-lhe que aquele comportamento era indigno de um seminarista, quem desejava servir Deus com devoção não se podia portar daquela maneira, parecia um lunático aos pontapés no pátio. Afonso ouviu-o cabisbaixo, os olhos fixados no soalho encerado. Durante algumas semanas inibiu-se de jogar football imaginário, mas a tentação acabou por ser mais forte do que a prudência e, passado algum tempo, lá estava ele a dar toques em pedrinhas, primeiro de forma discreta, de mansinho, como quem não quer a coisa, depois mais empolgadamente, esquecendo-se momentaneamente do decoro, força na bola para os ingleses do Carcavellos Club verem de que têmpera era feito um player do glorioso Club Lisbonense.
O frio, cruel e penetrante, abateu-se sobre Braga durante o mês de Dezembro. Cada um protegia-se do gelo à sua maneira. Uns não largavam as lareiras, outros envolviam-se em espessos casacos, Afonso preferia esfalfar-se a correr, a saltar, a rematar. Mas, com os músculos enregelados, o controlo dos movimentos era mais brusco, e o inevitável aconteceu. Um pontapé mais forte que o invisível goal-keeper do Carcavellos Club não conseguiu defender acabou com o vidro da casinha da jardinagem feito em bocados.
O vice-reitor achou que era de mais. Afonso foi classificado de “pagodeiro”, o termo utilizado para os brincalhões e indisciplinados que por vezes apareciam no seminário. No 69
dia seguinte, D. Basílio Crisóstomo chamou logo pela manhã o padre Álvaro e entregou-lhe um sobrescrito lacrado.
“O que é isto? “, perguntou o padre, olhando para o envelope. “Lê”, disse-lhe o reitor.
Intrigado, o pároco obedeceu e quebrou o lacre. Desdobrou a carta e começou a ler.
O documento era assinado por João Basílio Crisóstomo e nele o vice-reitor explicava ter o seminário concluído que Afonso da Silva Brandão, embora aluno aplicado e talentoso, não tinha na verdade vocação para a vida sacerdotal. Consequentemente, não seria ordenado. O
padre Álvaro empali-deceu, jamais imaginara que aquela convocatória tivesse sido feita para lhe entregar a carta de prego. Afinal de contas, D. Basílio Crisóstomo sempre lhe tecera os mais rasgados elogios sobre o seu protegido, o que era confirmado pelas boas notas no final do ano, pelo que aquela decisão se revelava totalmente inesperada. O vice-reitor explicou ao amigo as circunstâncias que o tinham levado a tomar aquela decisão, mas ficou combinado que Afonso seria autorizado a concluir o terceiro ano no seminário de modo a completar a sua educação. A condição era a de que ele teria de terminar definitivamente o seu bizarro comportamento no pátio, era a única forma de pôr fim ao falatório sobre o seu equilíbrio mental, onde é que já se vira um seminarista andar assim aos pontapés às pedras?
Afonso sentiu-se profundamente triste e magoado quando o padre Álvaro lhe explicou que tinha recebido a carta de prego e que ele afinal não iria ser ordenado. O jovem transformara-se num católico moderadamente devoto e, apesar dos tormentos nocturnos da carne, já se habituara à ideia de que iria ser padre. Agora os sonhos de se tornar um missionário em África desvaneciam-se como uma nuvem. Pior do que isso, começou a sentir-se inseguro quanto ao futuro. Se já não iria ser ordenado, o que faria da sua vida? O
regresso a Rio Maior parecia-lhe inevitável, mas não encarava a perspectiva com grande entusiasmo, as breves passagens pela Carrachana nos três verões anteriores deixaram-no com a convicção de que aquele já não era o seu mundo, não estava ali o futuro, apenas o passado. O problema atormentou-o durante algum tempo, antes de o sacudir da mente como se não passasse de uma incomodidade passageira. O que quer que venha a acontecer é porque estava já predestinado, concluiu por fim, com fatalismo. Entregou-se então placidamente ao destino.
Quando Maio de 1907 chegou, despediu- se do padre Fachetti, do padre Nunes, do vice-reitor, do padre Álvaro e da cidade de Braga e regressou à casa da família. Voltava, não com o sentimento de derrota, mas de resignação, se não vinha como padre era porque tal não lhe estava reservado, era outro o seu destino. Quatro anos antes abandonara a Carrachana com uns trapos andra-josos no corpo, a chorar baba e ranho e cheio de dúvidas 70
sobre o que o esperava no Minho. Agora, aos dezassete anos, regressava taciturno, vestido com roupas escuras e limpas e com uma gravata ao pescoço, ainda carregado de dúvidas, algumas de origem metafísica, a maior parte bem mais prosaicas. Destas, a maior era a de determinar o seu verdadeiro papel nos desígnios do Senhor, ou seja, e no imediato, o que seria a sua vida em Rio Maior.
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IV
“Papá, por que gostas tanto de vinho? “
Paul Chevallier desviou os olhos da garrafa de Chablis e observou, espantado, a filha.
O dono do Château du Vin descera à adega da loja, uma vela na mão para iluminar o caminho, as paredes cobertas de garrafas e de densas teias de aranha. Agnès aguardava atrás de si, na sombra, remexendo os dedinhos, ardendo de curiosidade, tentando perceber aquela estranha paixão do pai. Como poderia Paul explicar-lhe os prazeres de Baco?
“Sabes o que é teres um doce aveludado a deslizar-te pela boca? “, perguntou Paul num tom misterioso. Agnès abanou a cabeça. O pai acocorou-se junto de si e abriu o rosto num sorriso. “Imagina esta coisa maravilhosa. A chuva penetra na terra, as raízes absorvem a água, as uvas amadurecem em sumo, nós transformamos o açúcar em álcool, o vinho inebria-nos os sentidos. “
Inspirou fundo. Sentimos-lhe o aroma, a fruta, a textura, o sabor, ele é açafrão e é poesia, é o néctar de uma flor, as lágrimas de Deus, o grinfar de uma andorinha, um perfume, uma melodia, a curva de uma mulher e uma brisa de Primavera. O vinho, ma petite, é a vida “ Apertou-lhe carinhosamente o nariz. “Percebeste? “ Agnés mirava-o com olhos arregalados, vidrados, nunca vira o pai falar assim. Fez que sim com a cabeça, em silêncio, dando a entender que percebera, mas a verdade é que tinha ficado agora mais intrigada do que nunca. Afinal, por que razão o pai gostava assim tanto de vinho? Aquela misteriosa resposta na adega do Château du Vin despertou em si uma curiosidade incontrolável, obsessiva, não percebeu as palavras mas estava determinada a entendê-las, não compreendeu o sentido mas sentira a sua força, o seu poder. O pai vivia fascinado pelo vinho e ela fazia questão de perceber porquê.
Crescentemente atenta a tudo o que a rodeava, Agnès abriu-se ao mundo e passou a ter novos interesses. A Exposição Universal de Paris constituíra uma inolvidável viagem ao futuro e um catalisador para a crescente curiosidade da rapariga pelas coisas da ciência. Mas a ciência mais à mão na sua vida em Lille era a do pai, exposta diariamente no Château du Vin. Graças à influência pa terna, motivada por aquela fascinante e enigmática resposta, mas também estimulada pelo espírito artístico e científico que orientava tudo o que vira em Paris, tornou-se no início da adolescência uma verdadeira perita na arte do vinho. Queria perceber tudo e deitou mãos à obra com desconcertante entusiasmo. Achava fascinante a 72
delicadeza quase religiosa com que o pai tratava uma garrafa, girava o líquido no copo para libertar o aroma ou saboreava o néctar. Longas horas de observação e de insistentes perguntas permitiram-lhe aceder ao enigmático mundo da enologia, a ciência que iria dominar as suas atenções imediatas.