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“Oh, papá, sê mignon, deixa-nos lá... “

Paul fitou Agnès e engoliu em seco.

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“Bem... eu... “, gaguejou. “Enfim... uh... por que não? “ Suspirou, vencido. “Está bem, está bem. Amanhã levo- vos. “

Abraçaram-no, efusivas.

“Merci, papá “

“Pronto, pronto”, disse Paul, derretendo-se no abraço. “Mas têm de se portar bem, ouviram? “

Foi a única vez que o pai consentiu em levar as duas raparigas consigo. Na manhã seguinte, um domingo cinzento e húmido, meteu os quatro filhos num coche, com Marcel a conduzir, e partiram todos estrada fora, coche, cavalos e cães a seguirem com grande alarido até à floresta. Cruzaram o rio Aisne e entraram no Bois de Compiègne, passando por entre os grandes carvalhos até aos Beaux Monts, donde viraram para os Étangs de Saint-Pierre. Agnès e Claudette ficaram aí sentadas junto a um lago rodeado de faias, enquanto os irmãos brincavam às guerras por entre os arbustos, sob o olhar enfastiado de Marcel, e o pai galopava com o barão Redier atrás dos cães e das lebres. As irmãs acharam a experiência enfadonha, não havia ali aventuras nem excitação, apenas um tédio sem fim.

Decepcionadas, nunca mais quiseram ouvir falar de caçadas, mil vezes os bocejos no Château Redier.

Paul era um homem avançado para a época e, quando Claudette terminou o liceu, decidiu pagar-lhe os estudos universitários. A filha mais velha, apaixonada por arqueologia e estimulada pelas recentes descobertas no Egipto e na Mesopotâmia, foi tirar História para a Sorbonne.

No ano seguinte, em 1911, foi a vez de ser dada a mesma oportunidade a Agnès. Sem surpresas, a segunda filha do casal Chevallier decidiu aos vinte anos seguir os passos da sua heroína Florence Nightingale e matriculou-se em Medicina, também na Sorbonne. Não era enfermagem, mas estava no mesmo ramo. Foi para Paris dividir com Mignonne e a irmã um apartamentozinho simpático em St.-Germain-des-Prés. O apartamento situava-se num primeiro andar da Rue de Montfaucon, junto ao mercado, e foi aí que viveu os melhores anos da sua vida.

Claudette e Agnès frequentavam faculdades diferentes, pelo que só se juntavam à noite e aos fins de semana. Uma vez por mês iam a Lille passar um fim de semana com os pais e receber a mesada. O dinheiro chegava-lhes para a comida, que iam buscar ao Marché St. -Germain, mesmo ali ao pé, e para pagarem o aluguer do pequeno apartamento, constituído por cozinha e uma sala grande, onde tinham duas camas, um sofá, um armário, uma escrivaninha e uma banheira. O quarto de banho localizava- se no rés-do-chão, era um 76

pequeno cubículo ocupado por uma retrete branca decorada com motivos azuis, como se fossem tatuagens sobre a porcelana, e servia todos os inquilinos do edifício.

O curso de Medicina revelou-se absorvente, mas o que se tornou verdadeiramente inesquecível foi a estreia em Anatomia. Agnès era das poucas mulheres a frequentarem o curso e foi muito a medo que, pela primeira vez, entrou na sala de dissecações para a primeira aula dessa temida disciplina. A meio da sala estava uma mesa e sobre ela encontrava-se estendido o cadáver de um homem nu. Os alunos rodearam a mesa num silêncio respeitoso, fascinados com a visão do morto, apenas o professor parecia descontraído, talvez até um pouco divertido, sabia bem como os alunos fantasiavam as sinistras experiências daquela cadeira, sobretudo antes de a frequentarem. O professor Bridoux tinha fama na Sorbonne, entre os estudantes de Medicina, de ser extravagante com os cadáveres. Ao contrário da maior parte dos professores de Anatomia, que dispunham de cirurgiões para as aulas de dissecação, Bridoux gostava de ser ele próprio a retalhar os corpos e a revelar-lhes as entranhas. Agnès conhecia-lhe a lendária fama de homem mórbido, uma reputação entre os estudantes que, em boa verdade, lhe atraía uma clientela fiel, afinal de contas o responsável pela cadeira de Anatomia era geralmente considerado a bizarria mais fascinante da faculdade.

“Muito bem, meus senhores”, começou o professor Bridoux a dizer enquanto esfregava as mãos. “A palavra anatomia deriva do grego anatemnein, ou seja, cortar e abrir.

Ergueu um dedo. “Vocês vão ser agora iniciados na mais velha disciplina da Medicina e, se me permitem, vale a pena recordar aqui a importância histórica deste trabalho “ Os estudantes bebiam cada palavra, presos à exposição desta lenda viva da Faculdade de Medicina. “As primeiras autópsias foram efectuadas por Herophilus de Chalcedon e por Erasistratus de Kos, trezentos anos antes de Cristo, mas esta prática foi proibida no século III por motivos religiosos “ Bridoux mirou os rostos em redor com ar de desafio. “A religião, meus caros, é a fonte do obscurantismo. Se ela vos tentar, resisti. Se ela já vos tentou, desisti. Ciência e superstição não combinam, acreditem. Olhem o exemplo desta nossa nobre disciplina, tão importante para o conhecimento do homem. Pois, apesar da sua importância, o obscurantismo religioso revelou-se tão forte e durou tanto tempo que foi preciso esperar pelo século XIV para voltar a ser feita uma autópsia na Europa” Bridoux pegou num bisturi. “Durante todo esse tempo, tudo o que a medicina sabia sobre a anatomia humana devia-o ao trabalho do grego Galen de Pergamon, o médico de Marcus Aurelius, que publicou uma centena de trabalhos destinados, dizia ele, a trazer luz às trevas.

E só no século XVI, meus senhores, é que alguém retomou os estudos de anatomia e foi mais longe do que Galen.“ Mirou os estudantes. “Sabem quem foi esse génio? “ 77

Um rapaz muito magrinho, que Agnès sabia ser oriundo de Bordéus, levantou timidamente o dedo e o professor fez-lhe sinal para falar.

“Morgagni? “

“Esse veio depois”, atalhou o professor Bridoux, brandindo o bisturi. “O médico que foi para além de Galen, chegando mesmo a questionar as suas conclusões, foi o belga Andreas Vesalius. Vesalius era conhecido por o louco, vejam lá, tinha essa triste fama só porque possuía a paixão pelo conhecimento. Começou por dissecar muitos animais e passou depois aos cadáveres das pessoas executadas em Bruxelas. Chegou até a fazer autópsias em público, uma coisa então nunca vista. As suas descobertas foram descritas em Tabulae anatomicae sex e, sobretudo, em De humani corporis fabrica libri septem, o mais fundamental trabalho de desenvolvimento da anatomia, disponível aqui na biblioteca da faculdade para os que gostam de exercitar o seu latim “ Ergueu a mão direita, num tom dramático. “Mas, hélas! ninguém é profeta na sua terra. Vesalius foi tão enxovalhado pelos seus colegas por ter questionado Galen, por ter desafiado alguns dos velhos ensinamentos, que se viu forçado a emigrar para Espanha, onde se tornou médico da corte “ Bridoux olhou para o aluno magricelas que falara havia instantes. “Do mero estudo da anatomia, as autópsias passaram no século XVII ao estudo da causa da morte das pessoas como forma de ajudar os vivos. Entrou aqui um novo cientista. Quem? “

“Morgagni”, sorriu o estudante, corando e sentindo-se lisonjeado pela cortesia do professor.

Bridoux abriu os braços.

“Voilà. Giovanni Battista Morgagni”, disse, pronunciando o nome com um afectado sotaque italiano. “Sabem, a palavra patologia também vem do grego. Associa pathos, ou sofrimento, a logos, ou ensinamento. Pathos logos. Patologia. O ensino do sofrimento.

Depois dos trabalhos pioneiros de Galen de Pergamon, foi o médico italiano Giovanni Morgagni, de Pádua, quem estabeleceu os modernos fundamentos do estudo das patologias.