Morgagni efectuou quase setecentas autópsias e publicou as suas conclusões numa obra em cinco volumes, De sedibus et causis morborum. Foram aqui efectuadas as ligações entre sintomas clínicos e os resultados das autópsias. Morgagni tentou assim demonstrar que era possível descobrir no post mortem as causas da morte de uma pessoa, estabelecendo correlações entre as doenças e as alterações encontradas nos órgãos dissecados. “ Fez uma pausa. “Algumas dúvidas? “
Ninguém disse uma palavra.
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“Muito bem”, exclamou Bridoux, satisfeito. “Vejo que já sabem tudo. “ Aproximou o bisturi do abdómen do cadáver. “Meus senhores, chegou a hora de vos revelar a vida pelo estudo dos mortos”, anunciou com pomposidade. Olhou para o corpo nu e alterou o tom de voz, duas notas abaixo, como se acrescentasse um aparte. “Sei que vocês estão um pouco nervosos, é sempre assim da primeira vez, mas imaginem que estamos no talho e que isto é apenas um pedaço de carne. Aliás, não é preciso imaginar. Isto é realmente apenas um pedaço de carne. “
O professor Bridoux cortou a pele do homem morto e Agnès manteve com grande esforço o olhar fixo no acto, estava horrorizada e fascinada, queria fechar os olhos e ver, fugir e ficar.
Surpreendeu-se por observar tão pouco sangue em toda a autópsia, mostrava-se perplexa com a falta de dignidade daquele corpo, uma marioneta quebrada e deitada na mesa, uma massa inerte e despojada, mas, paradoxal-mente, a rapariga foi-se acalmando à medida que o cadáver se transformava, cada vez se via menos o homem e mais um monte de carne, era uma visão assustadora e tranquilizadora, parecia realmente que estavam no talho, a carne
humana, retalhada e cortada, em nada diferia da carne de vaca.
Após essa primeira aula de Anatomia, Agnès foi desanuviar para a Place de l'Opéra.
Sentou-se no Café de la Paix e pediu uma tisana. O garçon trouxe-lhe a chávena e o bule cheio, Agnès perguntou quanto era e pegou na bolsa para tirar o dinheiro. Abriu a malinha e viu uma coisa estranha junto ao porta-moedas. Tocou e sentiu-a macia. Pegou no insólito objecto, tirou-o da mala e, horrorizada, o garçon lívido a olhá-la, constatou que era uma orelha decepada. Ergueu-se sem dizer palavra e abandonou o café perante o olhar boquiaberto do empregado, ia furiosa com os colegas, gostaria de saber quem tinha sido o engraçadinho, havia brincadeiras que não se faziam.
Agnès suportava com dificuldade as pavorosas aulas de Anatomia, com as suas repugnantes dissecações de cadáveres esqueléticos e aquele permanente odor a formol, mas a parte científica compensava largamente estes macabros inconvenientes, deixando-a apaixonada pela Medicina. Os últimos trinta anos tinham sido ricos em importantes descobertas, com Pasteur a revelar o papel das bactérias na proliferação das doenças e a desenvolver vacinas para as prevenir, Ivanowsky e Beijerinck a descobrirem os vírus, Starling e Bayliss a detectarem a função das hormonas, Eijkman e Hopkins a determinarem a importância das vitaminas e Bateson a compreender o funcionamento da here-ditariedade estabelecida pelas leis de Mendel.
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Mas o que mais a intrigou foi o trabalho de Freud, que poucos anos antes tinha revelado o estranho mundo do subconsciente, da sexualidade, dos sonhos e da psicanálise.
Agnès ouviu pela primeira vez falar de Freud durante uma palestra do professor Maillet num simpósio médico sobre doenças da mente. Maillet era um discípulo do célebre neurologista Jean Charcot. Na pausa para o café, a jovem estudante encheu-se de coragem e foi ter com o palestrante.
“Professor Maillet”, disse Agnès. “Desculpe incomodá-lo, mas estive a ouvi-lo e achei curiosa a sua referência àquele médico austríaco que usa a hipnose para curar os loucos. Isso funciona mesmo?”
Maillet olhou-a com ar sobranceiro. Notando, porém, que a mulher que o interpelava era jovem, e bonita por sinal, tornou-se imediatamente solícito.
“Claro, minha cara mademoiselle. “
“Mas como é que descobriram isso? “
“Oh, não foi fácil, asseguro-lhe. Sabe, as doenças da mente sempre foram um mistério para a medicina. Os doentes apareciam com comportamentos estranhos e nós não sabíamos o que lhes fazer. Como poderíamos diagnosticar-lhes um mal e curá-los se tinham o corpo perfeitamente saudável? Era um verdadeiro mistério. “
“Foi então que apareceu esse austríaco...
“Bem, já havia estudos sobre psicologia e a neuroanatomia constituiu um passo importante para percebermos o que se passa aqui nas nossas cabecinhas”, disse, batendo com o indicador na testa.
“Mas não há dúvida nenhuma de que o doutor Freud nos deu uma grande ajuda. Ele veio cá a Paris e encontrou-se com o doutor Charcot, que foi meu mestre e tutor. O
doutor Freud sentia-se muito frustrado porque não conseguia tratar os medos, as neuroses e as obsessões dos seus pacientes usando os conhecimentos e os instrumentos habituais da medicina. Foi o doutor Charcot quem o ajudou a estudar os sintomas da histeria. O doutor Freud inscreveu-se no curso do doutor Charcot, aqui em Paris, e aprendeu a técnica da hipnose, que aprofundou em Nancy com o doutor Bernheim.“
“É isso que me deixa perplexa, professor Maillet”, atalhou Agnès. “A hipnose funciona mesmo? “
“Claro que funciona.“
“Mas isso parece coisa de bruxaria ou número de circo.
“Pelo contrário, minha cara mademoiselle, é um método perfeitamente legítimo para explorar os males da mente. Aliás, é muito usado aqui em França e a sua eficácia foi atestada pelo doutor Freud. Usando a sugestão e a hipnose, o nosso amigo austríaco 80
procura trazer à superfície as experiências traumáticas que a mente reprime. Sabe, o doutor Freud acredita que esses traumas são uma espécie de pecado original, são a fonte de muitas doenças que não têm origem orgânica. O que ele fazia era usar a hipnose para revelar os traumas e trabalhar a mente no subconsciente dos doentes. “
“Fazia?”
“Sim, parece que ele já abandonou o método da hipnose. “ “E porquê, se é assim tão eficaz? “
“Oh, isso não sei, terá de lhe perguntar a ele. “
Quando abandonou a palestra, Agnès foi direita a uma das livrarias de St.-Germain-des-Prés e perguntou por Freud. O empregado estendeu-lhe um exemplar de Le rêve et son interprétation, que Agnès levou para casa. A jovem não descansou enquanto não devorou o livro, percebendo então por que motivo Sigmund Freud abandonara a hipnose. Tinha descoberto um método melhor.
No ano seguinte, e nas pausas das deambulações pelas mentes e corpos humanos, Agnès descobriu o seu próprio corpo. Ou melhor, descobriu que era vaidosa. Até aos vinte anos quem a vestia era a mãe, e sempre com tal primor que a jovem se habituou a estar bem arranjada sem nada fazer por isso. Mas Michelle não se encontrava em Paris, uma cidade onde, para agravar as coisas, se exigia que as mulheres acompanhassem as novidades da moda, ou não fosse aquela a capital mundial do estilo. Agnès percebeu que teria de fazer pela vida e guardou parte do dinheiro da mesada para comprar tecidos com os quais costurava vestidos copiados da Vogue. Quando chegou de Lille usava um espartilho para lhe apertar o corpo debaixo das suas melhores roupas. Estes coletes com lâminas metálicas, que os franceses designavam de corset, estreitavam-lhe violentamente a cintura e projectavam os seios, desenhando uma silhueta sensual, embora dolorosa.
Mas em Paris percebeu, com alívio, que os espartilhos tinham caído em desuso.