Nenhum dos dois era, porém, muito bom na arte da dissimulação, ou talvez nenhum verdadeiramente o desejasse ser. Caminhando pela estrada, Carolina encostou o ombro esquerdo a Afonso, como quem não quer a coisa, os braços roçando-se repetidamente. Se fosse um ou dois toques, seriam acidentais. Mas o roçar permanente conferia intencionalidade ao gesto. O rapaz perdeu o controlo de si mesmo a partir desse ponto, entrando num transe de excitação, primeiro devagar, depois mais rápido. Começou por sentir o sangue a ferver, o coração a bombar, uma erecção a formar-se nas calças. Ela caminhava encostada, sem dizer palavra, e ele não desencostava. Ofegante, atreveu-se a procurar-lhe a mão com os dedos, sem olhar. Tocou-lhe na mão e aguardou um instante, esperando para ver se ela a retiraria, mas a verdade é que não retirou. As mãos enlaçaram-se e assim caminharam, sempre em silêncio, um turbilhão de sentimentos a revolver-lhes a cabeça, o desejo a acumular-se como uma tempestade que cresce no céu, a conter-se num volume imenso antes de desabar em fúria sobre a terra. Fizeram todo o passeio de regresso de mãos dadas. Ao aproximarem-se da Casa Pereira, Carolina desprendeu-se finalmente.
“Amanhã espera-me aqui na esquina, às dez da manhã”, disse. Deu- lhe um beijo furtivo e correu para a loja. O namorico fora reatado, mas não no ponto onde ficara quatro anos antes. É certo que Afonso, apesar dos apelos da carne, tinha ainda de vencer as inibições herdadas dos anos do seminário. Passou essa noite a rezar, implorando à Virgem que o protegesse do desejo, da luxúria e do pecado. Quando adormeceu, porém, não foi na 85
Virgem que pensou, mas na virgem que queria, tinha o corpo maduro e fantasiou mil pecados nos quentes braços de Carolina.
Despertou ansioso e logo pela manhã, muito antes da hora combinada, foi a correr para a Casa Pereira. Aguardou pelas dez horas com impaciência, nervoso, cheio de dúvidas e hesitações, a alma aconselhando prudência, a carne a tentá-lo, a acicatá-lo. Quando Carolina apareceu finalmente, foram os dois pela estrada fora, novamente de mão dada, desta feita no caminho das salinas. Ao pé do pinhal, Afonso puxou-a para lá da estrada, o coração em pulgas, a excitação a dominá-lo, as mãos a tremer. Atiraram-se os dois para trás de um arbusto. Afonso procurou por baixo das saias, puxou atabalhoadamente as calcinhas, foi tão desastrado que até as rasgou ligeiramente. Encaixou-se entre as pernas de Carolina, tirou apressadamente as suas próprias calças e penetrou-a com ardor, ambos ofegantes, tremendo de desejo, de volúpia, de gemidos e suspiros. O corpo tomou conta de si, como um animal incontrolável, desencadeando movimentos rápidos e ritmados, copulou-a até os olhos se encherem de estrelas e a carne explodir de prazer.
Foi dona Alzira, vizinha de dona Isilda, quem deu a notícia à mãe da rapariga.
“Então a sua Carolina já arranjou moço? “, perguntou Alzira da varanda de casa enquanto estendia roupa ao sol. “Para quando é o casório? “ Dona Isilda foi apanhada desprevenida e assustou-se. Ficou pálida e virou a cara para esconder a surpresa, mas não foi suficientemente lesta. Alzira percebeu que tinha dado uma novidade à vizinha e sorriu, maliciosa.
O que é facto é que, a partir daí, a proprietária da Casa Pereira manteve a filha debaixo de olho e bastaram apenas dois dias para perceber quem era o pretendente. Ficou surpreendida, não por descobrir que se tratava de Afonso, mas por verificar que tinha sido ingénua, por ter pensado que o caso estava arrumado, que os quatro anos de separação tinham sido mais do que suficientes para enterrar o assunto. Que parva fora! Não conhecia ela porventura a filha? Que disparate lhe teria passado pela cabeça para ignorar a natureza teimosa da moça, natureza que ela, feitas as contas, tão bem conhecia?
Mas dona Isilda era uma mulher prática e sabia que não valia a pena perder tempo a recriminar-se, não era isso que iria resolver o problema, o que ela precisava agora era de um bom plano. Pôs-se a matutar no assunto e concluiu, após longa ponderação, que de nada serviria estar a impedir o inevitável, ela própria tivera oposição dos pais quando começou a namorar o marido e não foi essa oposição que mais tarde inviabilizou o casamento. Pois se gostavam um do outro, como poderia ela resolver o assunto? Claro que tinha a opção de mandar a filha para casa dos primos em Lisboa, mas isso só serviria para ter aquela estouvada livre que nem um passarinho e sabe Deus o que ela faria, longe da sua vigilância, 86
naquela terra de marialvas e doidivanas. Não, a solução teria de ser outra. Reflectiu um pouco mais. Afonso era sem dúvida bom rapaz, pensou, o problema era ser pobre. Mas a verdade, considerou ainda, é que recebera já alguma educação em Braga, até sabia latim e falava línguas estrangeiras, e isso fazia dele um candidato mais interessante. Para poder casar com Carolina, contudo, era necessário que completasse a sua educação, precisava de atingir um estatuto de cavalheiro e ter um ganha-pão seguro. Chegada a este ponto no seu raciocínio, dona Isilda começou a formular novo plano. O rosto do primo Augusto, major de artilharia no Exército, veio-lhe à mente. Decidiu escrever-lhe, perguntando-lhe como poderia um moço de dezassete anos tornar-se um oficial. A resposta veio na volta do correio:
Lisboa, 2 de Junho de 1907.
Cara Isilda,
Agradeço-te a carta com as novidades de Rio Maior. Nós por cá todos bem. A Odete anda com uma tosse aborrecida, mas o doutor diz que não há problemas e vai-me passando umas fórmulas que eu vou buscar à pharmácia. Parece que os allemães têm uns medicamentos novos muito bons para os pulmões. Os rapazes têm-lhe dado cabo da cabeça e o que vale é que o André já vai para o Lyceu do Reyno.
Tomo a liberdade de presumir que a dúvida que me colocas sobre o Exército significa que tens alguém em mente. Para se ser official é necessário frequentar a Escola do Exército aqui em Lisboa. Para serem admittidos, os candidatos têm de ter approvação em algumas disciplinas da Universidade ou da Escola Polytecnica, mas nada de muito complicado. Têm de ter um attestado de bom comportamento, uma certidão de registo criminal da comarca e menos de 24 annos. Se fôrem menores, é necessária uma licença do pae ou tutor. A propina de matricula anda entre os cinco mil e os seis mil réis. Existe também um número limitado de vagas e os candidatos têm de ter qualidades physicas adequadas para servirem como officiaes, mas eu consigo resolver-te isso com uma palavra junto do comandante da Escola, o general Sousa Telles, visita frequente em casa do senhor meu pai.
Cá aguardo noticias tuas e manda um beijo à Carolina.
Saudades do
Augusto.
Dona Isilda tomou uma decisão logo que acabou de ler a carta. Foi ter com Carolina, contou-lhe que sabia de tudo e mandou a filha chamar o rapaz. Queria conversar com ele.
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Afonso apareceu na Casa Pereira ao final da tarde e Carolina introduziu-o nervosamente no gabinete da mãe. Informado de que dona Isilda estava a par do namoro, teve dificuldade em olhá-la nos olhos e sentou-se acabrunhado na cadeira, torcendo os dedos no regaço. Não sabia o que dizer e ela manteve um silêncio pesado. Só o quebrou quando ficaram a sós.
“Que rico padre que me saíste”, comentou dona Isilda com secura.