Afonso nada disse. Olhava para o chão, embaraçado, com vontade de se sumir dali.
Sentia-se um traidor, alguém que abusara da confiança de quem o ajudara.
“Se bem entendi, estás a namorar a minha filha?” Sentindo que era uma pergunta, o rapaz emitiu um grunhido de assentimento.
“E queres casar com ela?”
Afonso jamais pensara nisso, ficou até surpreendido por dona Isilda levar a coisa tão rápido e tão longe, mas presumiu naquele instante que seria de mau tom negar que tivesse propósitos honestos e voltou a assentir, desta vez com um silencioso movimento de cabeça.
“E pode saber-se como é que a tencionas sustentar? “ Afonso encolheu-se ainda mais na cadeira. Não tinha resposta para esta pergunta, nunca lhe ocorrera tal questão.
Permaneceu calado e de olhos baixos, algumas gotas de aflito suor a brotarem-lhe da fronte. Fez-se uma nova pausa pesada.
“Portanto, se bem entendo, não tens meios de a sustentar e queres casar com ela”, concluiu dona Isilda com um suspiro, como quem diz que já calculava. Mais uma pausa.
“Eu podia, é claro, colocar-te na loja como empregado, sempre ganhavas alguma coisa, mas isso não chega. Como quero o melhor para a minha filha, decidi ajudar-te a completar os estudos de modo a teres meios para a sustentares “
O rapaz ergueu a cabeça, de olhos arregalados.
“Obrigado, dona Isilda”, balbuciou.
“Não me agradeças ainda”, cortou a viúva de forma ríspida. “Falei com um primo meu e há a possibilidade de preencheres uma vaga na Escola do Exército. Para eu concordar com o namoro, quero em troca que te inscrevas nessa escola e te formes oficial.
“
“Mas isso é caro, dona Isilda. “
“Não te preocupes com os custos, isso é um problema meu. O que eu quero é que se acabem os namoricos com a Carolina enquanto não fores oficial, não vá acontecer uma desgraça. Quando saíres de lá alferes, então já estarás em condições de namorar a minha filha. De acordo? “
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Afonso olhou-a, indeciso.
“De acordo? “, insistiu a viúva, pressionando-o.
“ Quanto tempo dura o curso?”
“Ora deixa cá ver. “ Puxou de um folheto que o primo lhe tinha mandado e consultou a tabela. “São dois anos para infantaria e três anos para artilharia. “
“Dois para infantaria? “
“Sim. “
“É para aí que vou.“
O acordo ficou fechado e dona Isilda, apressada, mandou imediatamente Afonso para casa do primo Augusto, a pretexto de que o jovem precisava de se preparar para a admissão na Escola do Exército. Em bom rigor, o pretexto era verdadeiro. Afonso não tinha feito o liceu nem o politécnico e necessitava de obter aprovação em algumas disciplinas, como Trigonometria Esférica, Álgebra Superior, Desenho, Geometria Analytica e Geometria Descritiva, de modo a preencher os requisitos curriculares necessários para se matricular em infantaria ou cavalaria.
O major Augusto Casimiro, o primo de dona Isilda, vivia num aparta-mento de Belém com a mulher e dois filhos. Quando desembarcou no Rossio, Afonso seguiu as indicações manuscritas pela mãe de Carolina e pediu ao cocheiro para o levar até à Rua Direita de Belém. Foi acolhido com simpatia pela família Casimiro, que logo lhe arranjou explicadores para as disciplinas em questão. O rapaz tinha menos de dois meses para se preparar para os exames do politécnico, de maneira a conseguir os certificados que lhe permitiriam ingressar na Escola do Exército, e empenhou-se com afinco nos estudos. Sabia que não tinha mais opções e que esta era uma inesperada e preciosa segunda oportunidade.
Se falhasse, regressaria à Carrachana e não lhe restaria alternati-va que não fosse seguir os passos do pai e ir trabalhar a terra lá para o Cidral ou então voltar para a serração onde permanecia o Joaquim a gastar a sua juven-tude.
A mulher do major, dona Odete, devia ser tuberculosa porque tossia horrivelmente.
Afonso, imbuído de um espírito cristão que ganhara no semi-nário, desdobrava-se em esforços no sentido de a ajudar. Ia muitas vezes à farmácia situada numa esquina da rua, o letreiro por cima das elegantes canta-rias das portas e janelas da fachada a anunciar
“Laboratório Franco – Especiali-dades farmacêuticas”, para recolher os remédios que o médico receitava. Numa das visitas à farmácia reparou numa fotografia de uma equipa de football colada à parede.
“Quem são?“, indagou junto do empregado enquanto esperava que lhe aviassem a receita.
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O homem sorriu.
“É o Grupo Sport Lisboa”, disse com orgulho. “É o team onde eu jogo. “
“Você joga football? “
“Todos os domingos”, exclamou, apontando de seguida para o outro funcionário da farmácia. “Eu, aqui o Daniel e até o senhor conde “
O conde era Pedro Franco, conde do Restelo e o dono do Laboratório Franco.
“Como é que se chama mesmo a equipa? “
“Ó homem, é o Sport Lisboa, nunca ouviu falar? “
“Não. “
“Já vi que não gosta de football. “
“Pelo contrário, gosto muito. “
“ Gosta de football e nunca ouviu falar no Sport Lisboa?”
“Eu não. “
“Caramba, homem, vossemecê anda distraído. “
“Sabe, eu não sou de Lisboa, cheguei há pouco tempo.“ “Ah, bom”, excla-mou o empregado. “O Grupo Sport Lisboa nasceu nesta farmácia há uns três anos. É um club formado por rapaziada aqui da rua, os manos Catataus, os Carrilhos e os Monteiros, tudo pessoal que vive aqui e que se juntou à malta que era da Casa Pia “
“E jogam bem? “
“Se jogamos bem? “, riu-se o empregado. “Ó homem, vossemecê anda mesmo no mundo da Lua! Nós no ano passado ficámos em segundo lugar no primeiro Campeonato de Lisboa. Segundo lugar, ouviu? À nossa frente só o Carcavellos Club e atrás ficaram o Lisbon Cricket e o CIF dos irmãos Pinto Basto. “
“Ah é? Vocês jogam com o Carcavellos Club? “, perguntou Afonso, agora genuinamente impressionado.
Já no tempo do Club Lisbonense o Carcavellos Club era a equipa mais temível que havia, formada por ingleses do cabo submarino. Se o team do empregado da farmácia jogava com o Carcavellos Club, raciocinou Afonso, é porque devia ser realmente muito bom.
“Somos vice-campeões de Lisboa”, repetiu o homem com incontido orgulho.
“Posso ver os vossos jogos? “
“Este domingo, se quiser. Vamos defrontar o Cruz Negra em match amigável. O
Campeonato só começa no Outono. “
“ E onde é isso?”
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“Aqui ao lado, nas Salésias, aquele campo ao lado do quartel. Às três e meia da tarde.
“
Afonso não faltou ao encontro. Eram três da tarde de domingo e já abancara nas Salésias, um descampado rodeado de casas e que pertencia a um quartel de cavalaria, de resto as cavalariças estavam alinhadas ao fundo, do outro lado via-se o Tejo a deslizar preguiçosamente para o mar. Havia já uma pequena multidão a aglomerar-se em torno do campo de terra batida, observan-do alguns jogadores que treinavam junto a balizas improvisadas. Uns vestiam camisas verdes com uma cruz negra bordada ao peito, outros apresentavam-se de camisolas vermelhas e calções brancos, entre eles os dois empregados do Laboratório Franco. Afonso não teve dificuldades em perceber que os primeiros pertenciam ao Cruz Negra e os segundos ao Grupo Sport Lisboa. Ao fim de meia hora, um homem de calças, gravata e colete chamou os captains das duas equipas e os três fizeram a escolha do campo e da bola. Era o referee.