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O vinho fazia parte das suas vidas, ou não fosse Rafael Laureano um pequeno e dedicado produtor. Afonso habituou-se a colaborar no trabalho de produção de tinto, atirando as uvas para os balseiros instalados num anexo. O pequeno passou a acompanhar os adultos no trabalho de pisar as uvas para fazer o mosto, uma tarefa que lhe produzia tonturas, percebeu mais tarde que era o álcool libertado do mosto que o embriagava. O
vinho era depois colocado em tonéis, com gradações que variavam entre os doze e os quinze graus, para serem vendidos aos armazenistas de Rio Maior. Nos balseiros ficava entretanto o engaço, formado pelos pés das uvas. O pai atirava água para cima do engaço e nascia ali um vinho mais fraco, de sete ou oito graus, a que chamavam água-pé.
Quando os filhos atingiam os cinco anos, o senhor Rafael arrebanhava-os para o ajudarem no trabalho. Podiam ser ainda muito pequenos, mas o pai considerava-os aptos a desempenharem pequenas tarefas. Em 1876, porém, abriu a escola primária em Rio Maior.
O ensino não vinha a tempo dos filhos mais velhos do casal Laureano, mas a questão colocou-se em relação a João, Joaquim e, mais tarde, Afonso. O pai mostrou-se inicialmente relutante em enviá-los para a primária, argumentando que precisava era de mãos que o ajudassem a trabalhar a terra ou a ganhar sustento para a família noutros trabalhos. Teve de ser o pároco de Rio Maior, o padre Gaspar Costa, a intervir e usar toda a sua divina influência para levar a melhor sobre o casmurro Rafael. O que é facto é que os rapazes lá acabaram por serem autorizados a frequentar a escola.
A vez de Afonso chegou num dia húmido e frio do Outono de 1896. Logo pela manhã, desafiando a nortada gelada que soprava com bravura lá do Alto do Seixal, a senhora Mariana levou o filho mais novo pela mão desde a Travessa do Rosmaninho, onde viviam, até à Rua das Dálias. Atravessaram apressadamente o largo, encolhidos nos seus miseráveis agasalhos, e meteram à direita pela Rua das Flores. A manhã despertara agreste, as gotas do orvalho matinal a brilharem como pérolas reluzentes nas folhas molhadas das azinhei-ras, as pétalas das flores abrindo-se à luz fria da alvorada e à primeira dança dos insectos, as folhas fendidas dos carvalhos-das-beiras a formarem lágrimas que deslizavam pelos esbranquiçados das suas páginas inferiores, o aromático odor da resina a flutuar no ar, era como um perfume exótico que se espalhava pelo caminho de terra rasgado por entre a verdura. Seguiram por ali fora, alheios ao espectáculo da natureza no dealbar do novo dia, até passarem pela Torre dos Bombeiros e chegarem à escola primária de Rio Maior.
“Que bom, Afonso, vais para a escola”, dizia-lhe a mãe pelo caminho. “Estás contente, não estás?
Afonso assentia com a cabeça. A senhora Mariana passara os últimos dias a pintar-lhe um quadro idílico da escola, que era uma coisa maravilhosa, que ia ter muitos amigos, 12
que ia aprender a ser um grande homem, o tom era de tal modo entusiástico que o pequerrucho deu consigo ansioso por frequentar tal lugar. Ficou por isso ligeiramente surpreendido quando, ao aproximar-se do edifício, viu outras crianças a chorar, as mães arrastavam-nas nos passeios e elas desfaziam-se em lágrimas. Achou estranho, por que razão estariam os outros miúdos tão assustados por irem para a escola?
A verdade é que, ao cruzar o portão, Afonso entrou num mundo especial, onde as leis eram diferentes e as condutas reguladas, um mundo que lhe abriu as portas para horizontes que se estendiam para além da Carrachana. Um letreiro afixado à porta da escola explicava que os pais teriam de entregar uma “declaração do paroco ácerca da edade”, uma
“declaração do regedor atestando a residência do aluno na freguezia” e uma “declaração do facultativo de não soffrerem as crianças molestias contagiosas e de terem sido vaccinadas”.
A senhora Mariana não sabia ler, mas tinha-se informado previamente junto do padre Gaspar e levava consigo os três documentos requeridos, que entregou à ajudante da escola, a circunspecta dona Vadeia Figueiredo.
O primeiro mestre de Afonso foi o professor Manoel Ferreira, um dinâmico leiriense que havia mais de vinte anos tinha chegado a Rio Maior e aberto a escola, a única instituição de ensino primário para rapazes existente na vila. O professor Ferreira era adepto intransigente de uma disciplina rígida nas salas de aula e obrigou Afonso, a exemplo dos seus colegas, a usar bibe.
“Aqui não há ricos nem pobres”, explicou ele à senhora Mariana quando esta se admirou com a imposição. “Na escola são todos iguais e, por isso, vestem por igual.” À disciplina férrea, Manoel Ferreira juntava métodos pedagógicos inovadores e activos, como a cartilha João de Deus. O professor era casado com dona Maria Vicência, de quem tinha onze filhos, mas, aos quarenta e quatro anos, encontrava ainda tempo para dirigir os jornais O Riomaiorense e, posteriormente, o Civilisação Popular, semanários que fundara, para além de uma tipografia. Foi Manoel Ferreira quem ensinou Afonso a ler, associando letras a desenhos e a sons, de acordo com as novas teorias de ensino.
A dureza das tarefas de que o pai incumbia Afonso na lavoura fez com que o pequeno gostasse de ir às aulas. Considerava a escola um local de descanso que lhe dava oportunidade para fugir ao exigente trabalho na terra. Afonso aplicou-se nos estudos, mas sobretudo nas brincadeiras, as correrias do “apanha” e o “aqui-vai-alho” tornaram-se as favoritas. A principal, porém, era o football, jogado em geral com uma bola feita de trapos e meias velhas. Ao meio-dia ia a casa comer alguma coisa e levava depois uma cesta com comida para João e Joaquim, que trabalhavam na serração. Os dois irmãos iam ter com ele a meio caminho para recolherem o farnel e Afonso voltava depois para a escola. Quando as 13
aulas acabavam, perdia-se na bola com os amigos no Largo Conselheiro João Franco, a principal praça de Rio Maior, até ao dia em que partiu a vitrina da Pharmácia Barbosa com uma bola reforçada por um revestimento de couro. Como todos na vila se conheciam, o doutor Francisco Barbosa foi queixar-se à mãe e a partir desse dia acabaram-se as sessões de football pós-escolar.
A paixão do pequeno Afonso pelo football nasceu-lhe da única viagem que fez nos primeiros dez anos de vida. Quando tinha seis anos, meses antes de ir para a escola pela primeira vez, os pais receberam a notícia de que a prima Ermelinda, uma parente afastada da mãe, estava a morrer de tuberculose. A prima Ermelinda vivia em Lisboa e ficou decidido que iriam visitá-la no domingo seguinte. Nunca tinham ido à capital e a viagem suscitou a maior animação na família, em boa verdade as maleitas da prima Ermelinda apenas preocupavam a senhora Mariana, para o senhor Rafael e os filhos aquele não passava, afinal de contas, de um apropriado pretexto para irem visitar a grande cidade.