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O match começou instantes mais tarde, empolgante. A multidão animou-se, soltando

“aaaaah” sempre que havia um remate à baliza. Pela diferença de intensidade dos clamores quando o perigo ocorria numa baliza ou noutra, Afonso percebeu que o Sport Lisboa colhia a maior parte da simpatia dos espectadores domingueiros. A certa altura, um jogador do Cruz Negra caiu perto da baliza do Sport Lisboa e o referee assinalou penalty. Alguns espectadores não se conformaram e entraram no campo a correr para pedirem satisfações ao juiz, tudo com tal exaltação que tiveram de ser os jogadores a protegerem o homem.

Quando a calma foi restabelecida, um atleta do Cruz Negra apontou o penalty e marcou goal. Os espectadores reagiram com frieza, em vez do “aaaaah” excitado ouviu-se um

“oooooh” desapontado. O jogo recomeçou e, a dada altura, a bola saiu do campo. Um dos espectadores agarrou na bola e fugiu por ali fora. Dois jogadores de vermelho foram a correr atrás dele e conseguiram recuperar o esférico. A partida foi reatada e, pouco depois, uma explosão de alegria assinalou a igualdade restabelecida pelo Sport Lisboa. Os vermelhos acabaram por ganhar o match por 3-1 e a multidão dispersou, satisfeita.

Afonso ficou ainda a ver os jogadores a despirem-se num canto do campo e a lavarem-se em alguidares. Um rapazinho ia com um balde buscar água a um poço e despejava-a sobre os atletas. O jovem espectador sorriu perante o espectáculo e abandonou calmamente as Salésias, voltando a casa e aos exercícios de álgebra superior.

Durante dois meses foi esta a vida de Afonso. Ao longo da semana estudava com os explicadores pagos por dona Isilda e ao domingo ia ver o Grupo Sport Lisboa brilhar nas Salésias, em Alcântara ou no Lisbon Cricket Club. Chegou até a participar em alguns treinos, quando faltavam jogadores para completarem duas equipas, mas escasseava-lhe o 91

talento e a preparação física para acompanhar o ritmo dos titulares. Esta vida durou até princípios de Agosto, altura em que chegou a hora de ir à Academia Politécnica prestar provas.

Os exames correram bem e, em alguns dias, Afonso tinha na mão os cinco certificados de que precisava. O major Augusto Casimiro levou-o à Escola do Exército, situada no sítio da Bemposta, ou Paço da Rainha, onde entregou todos os documentos e certificados exigidos e pagou os mais de cinco mil réis de propina de matrícula para infantaria. Afonso teve ainda de fazer exercícios físicos de modo a determinar a sua aptidão para enfrentar os rigores dos treinos militares, um teste que superou com espantosa facilidade. O seu porte atlético impôs-se, mais ainda porque a sua frequente participação nos treinos do Sport Lisboa o colocou em apuro de forma. O major Casimiro ainda chegou a dar uma palavra ao general Sousa Telles para facilitar discretamente as coisas, uma vez que havia mais candidatos do que vagas, mas a cunha veio a revelar-se desnecessária. A 31

de Agosto, a lista dos candidatos seleccionados foi afixada no átrio da Escola e Afonso viu o seu nome incluído. Sentiu um peso libertar-se-lhe dos ombros e uma lufada de ar puro encher-lhe os pulmões. Sabia que um fracasso teria consequências penosas na sua vida, pelo que foi com grande alívio que se viu matriculado na Escola do Exército.

As aulas só começavam no Outono e Afonso foi gozar Setembro à Carrachana.

Avisada da presença do rapaz, dona Isilda manteve Carolina fechada a sete chaves em casa.

A viúva argumentava que os acordos eram para cumprir e não queria cá namoricos enquanto o pretendente não tirasse o curso de guerra que lhe abriria as portas do oficialato, não fosse o diabo tecê-las e a rapariga aparecer prenha. Mas dona Isilda não fugiu às suas responsabilidades de protectora e financiou a confecção, na alfaiataria do Ulpio Brazão, da farda de primeiro-sargento cadete para Afonso, um uniforme obrigatório para todos os jovens que frequentavam a Escola do Exército.

Afonso regressou a Lisboa na quinta- feira, 24 de Outubro. Apresentou-se na secretaria da Escola e fez, dias depois, o juramento de fidelidade, requisito imprescindível para poder prestar serviço nos corpos do Exército. A partir desse instante estava integrado na Escola do Exército e, pormenor estranho para quem tinha sido forçado a pagar uma propina de matrícula, passou a ganhar um soldo de trezentos réis por dia.

Um sargento conduziu-o, a ele e a mais uns quantos que se tinham igualmente apresentado nesse dia, até à parada do internato da Escola, um grande largo em terra batida rodeado de edifícios cor-de-rosa-claro de dois pisos, grandes olmos a erguerem-se ao fundo para lá do muro, a bandeira azul e branca de Portugal hasteada num mastro, no outro o estandarte da Escola do Exército, as armas portuguesas em cada canto cercadas por dois 92

ramos de loureiro. Levaram- nos até ao edifício central do lado esquerdo e, quando Afonso entrou, percebeu que, mais do que um dormitório, aquele era um verdadeiro armazém de cadetes. Havia beliches à esquerda e à direita num espaço amplo e sem compartimentos, contados eram cinquenta beliches de cada lado, cem ao todo, lençóis brancos assentes em madeira ordinária, nada que ofendesse o rapaz da Carrachana, habituado a pior na cama de latão que durante anos partilhou com os irmãos. O sargento indicou-lhes as suas camas, deu-lhes as chaves dos cacifos e ordenou que tirassem as roupas civis e passassem, a partir daí, a usar apenas a farda regulamentar.

Afonso despiu-se junto ao cacifo, os pés assentes no soalho frio de azulejos, e colocou a farda que apenas experimentara no alfaiate de Rio Maior. Vestiu as calças cinzentas e a camisa interior, calçou os sapatos e meteu-se dentro da jóia do uniforme, o dólman. Era um vistoso casaco azul, abotoado verticalmente a meio do peito com seis botões de metal amarelo, as abas ligeiramente arredondadas na frente, a gola de vermelho-vivo com o emblema dourado da Escola, as divisas de primeiro- sargento bordadas a encarnado nas mangas e uma bandoleira branca a cruzar-lhe o peito e a segurar uma cartucheira à anca. Na cabeça, o barrete azul. Quando todos terminaram de se fardarem, o sargento conduziu-os para fora do dormitório até à parada e ensinou-lhes os movimentos que teriam diariamente de seguir durante a cerimónia de formatura do almoço. Depois, os cadetes entregaram ao sargento os seus pratos e talheres, devidamente numerados, para serem levados para o refeitório. O prato e os talheres de Afonso estavam marcados com o número 190, e os cadetes foram informados do lugar que teriam de ocupar no refeitório.

A cerimónia começou ao meio-dia e meia. O sargento apareceu pouco antes na parada e mandou os cadetes formarem em sentido. Afonso e os restantes novatos ficaram numa das pontas. Ao meio-dia em ponto, o comandante do corpo de alunos saiu do seu gabinete e entrou na parada. Era o coronel Leitão de Barros, um sexagenário barrigudo, o cabelo grisalho puxado para trás, um bigode espesso e pontiagudo e fortes arcadas supraciliares. O comandante colocou-se frente aos cadetes em sentido e fez sinal ao sargento.

“Direita, volver! “, gritou o sargento.

Os cadetes giraram para a direita e Afonso, atento ao movimento, acompanhou-os.

Ficaram em sentido, voltados para as bandeiras e os olmos que se erguiam para lá do muro.

“Ordinário, marche! “, voltou a gritar o sargento, o vozeirão a encher a parada.

Um punhado de homens da fanfarra do Exército começou a tocar enquanto os cadetes marchavam em passo militar, circulando em redor da parada até voltarem ao ponto de partida. Tudo aquilo era novidade para Afonso, que se divertia por se ver naquela figura.

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O sargento deu ordem de que a cerimónia estava terminada e os cadetes destroçaram e correram rapidamente para o edifício atrás de si, exactamente no lado da parada oposto aos dormitó-rios. Afonso entrou no grande salão e viu duas enormes mesas em fila de cada lado, era o refeitório. Os cadetes dirigiram-se às mesas e aguardaram em pé atrás das cadeiras. O coronel Leitão de Barros entrou no refeitório e, nesse instante, o sargento voltou a gritar uma ordem.