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“Atenção, sentido “

Ficaram todos muito hirtos.

“Meu coronel, dá licença que mande sentar? “, perguntou o sargento em voz baixa.

“Sim senhor, mande sentar. “

O sargento deu a ordem e os cadetes tomaram os seus lugares. Afonso reconheceu o número 190 marcado no prato e nos talheres à sua frente e não pôde deixar de admirar aquele pormenor da organização militar. O rancho foi servido de imediato. Os empregados trouxeram carneiro guisado com batatas, água e vinho tinto. Não estava mal confeccionado, o que Afonso achou surpreendente. Para sobremesa, café com leite e pão.

Durou poucos dias esta fase de adaptação. O ano lectivo começava a 30 de Outubro e adivinhava-se um grande acontecimento. Sua Majestade, El-Rei D. Carlos, vinha presidir à sessão pública da abertura solene e a Escola do Exército esmerou-se para a importante ocasião. Afonso nunca tinha visto Sua Alteza Real em carne e osso e ardia de curiosidade de observar pela primeira vez o monarca, o homem mais importante do país, aquele que tinha poder de vida ou de morte sobre todos e cada um.

Na manhã do grande dia, os cadetes formaram em quatro companhias perante o portão de entrada da Escola, no Paço da Rainha, dando a direita ao muro da parada. A banda de música de infantaria encontrava-se agregada ao batalhão, enquanto uma companhia de Infantaria 16 formava a guarda de honra, também com uma banda de música. Uma bateria de seis peças de Artilharia 1 tinha sido instalada no campu de exercícios da Escola, preparada para as salvas do estilo. A espera foi demorada, com o coronel Leitão de Barros e os sargentos a inspeccionarem inúmeras vezes os cadetes, o nervosismo patente em cada um.

Pelas dez da manhã, a cavalaria irrompeu com grande espalhafato pela Rua Gomes Freire e invadiu o Paço da Rainha, anunciando a chegada do rei, e um automóvel negro apareceu de seguida e foi imobilizar-se diante do Palácio da Bemposta. Estavam todos em sentido e Afonso nunca vira carro tão grande, dava certamente para cinco pessoas se instalarem nele. As duas bandas começaram a tocar com estrondo, um tapete vermelho foi imediatamente estendido pelo passeio, o general Sousa Telles emergiu da Escola e fez 94

continência para o automóvel, o coronel Leitão de Barros ao lado, todos de uniforme de gala. As peças de artilharia dispararam as salvas do estilo. A porta do automóvel abriu-se e saiu de lá um vulto, os oficiais curvaram-se numa vénia, D. Carlos pisou o passeio, era um homem gordo por baixo do uniforme engalanado, um bigode loiro a ornar- lhe a face bolachuda. Ouviram-se palmas e o rei acenou para o passeio contrário com um sorriso forçado, saudando as mulheres dos oficiais que se aglomeravam na rua e nas varandas a exibirem os seus melhores vestidos domingueiros e de guarda-sóis de estilo parisiense nas mãos, meros adornos naquele dia cinzento. Abriram-se alas por entre a guarda de honra e D. Carlos entrou na Escola do Exército, o general Sousa Telles sempre ao seu lado a indicar-lhe o caminho e o resto do séquito no encalço.

“Será verdade o que dizem dele? “, perguntou Afonso, num sussurro, ao Mascarenhas, o cadete que aguardava ao seu lado e com quem já travara amizade.

“ Que ele é impotente?”

“Não, que ele é cornudo. “

“Sei lá”, devolveu Mascarenhas com uma careta. “Já ouvi tanta coisa. Impotente, cornudo, fornicador, louco. Não sei se é verdade, mas olha que não há fumo sem fogo. “

“Pelo menos comilão é ele”, concluiu o de Rio Maior. “Viste-lhe a pança?“ Afonso e os cadetes permaneceram duas horas na rua, aguardando impa-cientemente o fim da cerimónia solene que se desenrolava no salão nobre do primeiro andar. Por volta do meio-dia, o reboliço regressou ao Paço da Rainha, as bandas recomeçaram a tocar, el-rei reapareceu no passeio, despediu-se dos oficiais, acenou às damas e donzelas, meteu-se no carro, as peças de artilharia foram dispensadas das habituais salvas do estilo e o automóvel arrancou no meio de um pandemónio infernal de cascos de cavalo a ecoarem pelo largo, levando consigo o ruidoso séquito da cavalaria.

Com esta cerimónia começou o ano lectivo. Afonso habituou-se à rotina de acordar às seis da manhã, ir tomar um pequeno-almoço de café e bolachas e comparecer nas salas para as aulas. Começava às segundas-feiras, pelas sete da manhã, com Esgrima, seguindo-se às oito e meia a classe de Escrituração e depois, pelas onze, Topographia. Ao meio-dia e meia era o almoço e à uma da tarde vinha a aula de Fortificação Passageira, onde aprendia os trabalhos de bivaque e acampamento, mais as comunicações mi litares e as aplicações de fotografia na guerra. Não eram matérias tão estimulantes como as suas conversas com o padre Nunes em Teologia Dogmática, mas Afonso esforçou-se por encontrar interesse nos novos assuntos que tinha de estudar. Após as aulas, o resto da tarde ficava livre e, depois do jantar, os cadetes seguiam para o dormitório, onde às nove da noite, terminada uma rápida e frugal ceia, já estava tudo ferrado a dormir.

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As aulas do primeiro ano de infantaria eram comuns às de cavalaria. Ao longo da semana, de segunda a sábado, os cadetes passavam o tempo em várias disciplinas, como Instrucção de Tiro, Gymnástica, Administração e Contabi-lidade, Táctica de Infantaria e Cavallaria, Equitação, Balística Elementar e Organização dos Exércitos. Na carreira de tiro adquirira particular destreza com a Mauser Vergueiro, a carabina que tinha uma culatra tipo Mauser que o coronel Vergueiro modificara três anos antes, adaptando-a aos braços curtos do soldado português. Os braços de Afonso eram, na verdade, longos, mas revelava-se capaz de fazer maravilhas com aquela arma. Outra disciplina considerada importante pelos oficiais era Hygiene Militar, ministrada por um médico que defendia a estranha tese de que se devia tomar banho uma vez por mês e até, quando chegava o calor, uma vez por semana. Os cadetes riram-se com o exagero, tanto banho fazia mal à pele e era pouco saudável, mas o riso transformou-se em irritação quando se viram obrigados a sujeitarem-se periodicamente a tão radical experiência.

As aulas e os exercícios abriam aos cadetes um apetite voraz. O problema é que os pratos dos almoços eram repetitivos. Variavam entre a fressura de porco com arroz, o bife com batatas fritas e o bacalhau guisado com batatas. Os jantares eram mais diversificados, com peixe cozido, vitela assada, cabeça de porco com feijão branco e hortaliça e peixe frito com batatas, enriquecidos pelas sopas variadas, como a sopa de arroz com grão, a sopa de feijão branco e a sopa de massa, mais as saladas de brócolos ou de feijão verde e o pão. Já a ceia limitava-se a chá e pão com manteiga para confortar o estômago durante a noite.

Os domingos eram dias livres. Afonso começava-os na capela da Escola, celebrando a missa dominical, e à tarde procurava outras distracções. Por vezes visitava o Animatógrafo do Rossio ou o Chiado Terrasse para ver uma película, brilhavam então nas telas lisboetas as fitas de Méliès e as produções Pathé, embora as principais atracções fossem as mirabolantes representações de Max Linder. Outras vezes ia à Rua da Palma assistir às comédias que passavam no Theatro do Príncipe Real ou procurava a Rua Nova da Trindade para se divertir com os festivais de gargalhada no Theatro do Gymnasio ou no Theatro da Trindade. Passava noites com os amigos nos cafés-concertos da Cervejaria Jansen, na Rua do Alecrim, ou então ia para a Avenida da Liberdade ver os nobres de charuto e cartola a entrarem no Grande Casino de Paris para esbanjarem vários contos de réis. Quando desejava outro tipo de emoções, apanhava um tramway até Sete Rios e seguia de eléctrico por Bemfica para ir cirandar pela Quinta das Laranjeiras, onde por cem réis se deleitava com as sensações produzidas pela visão das feras expostas no jardim zoológico.