Na maior parte dos casos, porém, preferia ir assistir aos jogos do Grupo Sport Lisboa. O Campeonato começou nesse Outono e as partidas eram muito disputadas, com a 96
equipa de vermelho e branco a medir forças com o sempre poderoso Carcavellos Club, mais o Lisbon Cricket, o CIF, o Cruz Negra e o recém-inscrito Sporting Club de Portugal.
Nas conversas com os empregados do Laboratório Franco, Afonso apercebeu-se de um grande ressentimento dos jogadores do Sport Lisboa em relação a este Sporting Club, uma antipatia que tinha origem numa operação de sedução efectuada recentemente pelo novo club aos melhores players vermelhos. Ao contrário do Grupo Sport Lisboa, um club de Belém em que os jogadores andavam com o balneário às costas e se lavavam na rua, o Sporting Club tinha o apoio de gente endinheirada, incluindo o abastado visconde de Alvalade, que ergueu um moderno campo com balneários e vestiários na antiga Quinta das Mouras, coisa de luxo só vista nos stadiums ingleses. Cansados das más condições em que jogavam e treinavam, os grandes players do Sport Lisboa, talvez os melhores do país, aceitaram um convite para irem para o Sporting Club. Eram, ao todo, oito players, incluindo dois dos irmãos Catataus, e esta sangria de talento quase deu cabo do Sport Lisboa. Foi, por isso, com imensa dificuldade que o club da águia se inscreveu no segundo Campeonato de Lisboa numa altura em que todos o davam como acabado.
O football começou gradualmente a entrar na vida dos cadetes, que adoravam tudo o que era jogo. O ambiente entre eles era divertido, animado por outros jogos que, por vezes, roçavam uma infantilidade boçal. À noite, Afonso ficava a ver os companheiros a disputarem o chamado “campeonato dos peidos”, competindo por entre gargalhadas no concurso da aerofagia mais ruidosa ou, em alternativa quando era servido feijão ao jantar, na mais malcheirosa. Antes de libertarem uma explosão de gás intestinal, alguns imitavam a voz dos instrutores de artilharia e gritavam “fogo à peça! “, seguindo-se a inevitável descarga aerofágica. Este foi um jogo no qual nunca Afonso participou, a sua educação no seminário permanecia presente nestes pormenores, ao ponto de o terem alcunhado de Aprumadinho.
“Ó Aprumadinho! “, chamavam-no por vezes. “Já viste que és o único gajo que aqui está que não dá peidos nem diz palavrões, caraças?”
Embora não participasse nestes jogos, seguia as competições com muita atenção e depressa percebeu que tudo servia aos cadetes para se disputarem. Comparavam o ruído dos arrotos e até o tamanho dos pénis, mas aqui os mais fracos depressa aprenderam a ter tento na língua porque não convinha compe-tirem com os cadetes mais encorpados, os matulões nem sempre eram os mais avantajados e mostravam-se hipersensíveis quando alguém menos avisado lhes chamava a atenção para esse pequeno pormenor, sobretudo quando comparados com alguns lingrinhas que se revelavam mais bem equipados.
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Um tema permanente de conversa eram “as gajas”. O quartel tinha um ambiente integralmente masculino e, como era normal, as saídas de domingo destinavam-se sobretudo a irem mirar as raparigas. Alguns cadetes evitavam a missa na capela da Escola e preferiam antes visitar as igrejas civis. O seu único fito era, claro, o de irem ver as moças, a quem faziam sinais discretos durante a liturgia. Várias raparigas ficavam encantadas com as fardas e acediam a passear com os cadetes após obterem a devida autorização dos pais, alguns dos quais, pobres ingénuos, acreditavam sinceramente que aqueles vistosos uniformes eram, por si só, garantia suficiente de que quem os vestia só podia ser um verdadeiro cavalheiro.
Como é natural, Afonso arranjou o seu grupo de amigos, entre os quais se destacava Cesário Trindade, um lisboeta desajeitado, filho de um general reformado antecipadamente por causa das suas ideias republicanas. Trindade tornara-se famoso desde que despejara com um espirro uma virulenta carga verdejante de corrimento nasal sobre o professor de Balística Elementar. Os colegas gracejaram com o incidente, considerando aquele espirro uma verda-deira lição elementar de balística, e desde essa altura o Trindade passou a ser conhecido por Ranhoso.
O que aproximou os dois rapazes foi o prazer intelectual, uma vez que ambos eram os únicos cadetes apaixonados pela filusofia. Mas o Ranhoso era um radical, defendendo ideias que chocavam com os valores que Afonso adquirira no seminário.
“Hegel e Nietzsche são os meus filósofos favoritos”, anunciou Trindade certo dia, estavam ambos a saborear no pátio o sol do Outono.
“Ah é? Porquê? “
“Porque não confundem realidade com desejo e são os únicos cujos ensinamentos são úteis para a nossa carreira militar. “
“Ah sim? “, admirou-se Afonso. “Úteis em que sentido? “ “Homessa, então não os leste? “
“ Ler, li, mas não li tudo, não é? Não faltava mais nada... “Olha, o Hegel constatou que a guerra ajuda-nos a compreender que as coisas triviais, como os bens materiais e a vida das pessoas, valem pouco. Ele escreveu que é através da guerra que se preserva a saúde dos povos. Fascinante, não? “
“Estás parvo? A guerra vai contra os ensinamentos divinos contra um dos principais mandamentos, não matarás. O que é que isso tem de fascinante? “
“Ó Aprumadinho, estás a reinar comigo ou quê? Quais ensinamentos divinos? Então as cruzadas obedeceram a que ensinamentos “
“Deus disse: Não matarás! “
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“Arre! Até pareces um padreco a falar na catequese. A guerra, para tua informação, é o principal catalisador da disciplina humana. Platão e Aristóteles, por exemplo, fartavam-se de elogiar Esparta, admiravam a sua austeridade, a rigorosa disciplina e aquela cultura de combate ao egoísmo. E donde é que pensas que esses valores do rigor vieram, hã? Da permanente prontidão dos espartanos para a guerra, claro. A guerra, quer queiras, quer não, tem efeitos benéficos para quem se envolve nela, os valores marciais podem ser positivos para a sociedade...“
“E podem destruí-la”, atalhou Afonso. “Deixa-te de parvoíces, ó Ranhoso. Embora Hegel tenha realmente enumerado algumas vantagens da guerra, ele nunca fez a sua apologia, nunca disse que é bom estar em guerra. “
“Desculpa, mas isso está implícito no que ele escreveu. Vai ler. Aliás, o próprio Moltke criticou a paz, denunciando as suas falsas virtudes. “
“Moltke? Olha, é boa, nunca ouvi falar desse. É um discípulo de Hegel, é?“ Trindade riu-se.
“Ó Aprumadinho, então não sabes quem é o Moltke? “ Abanou a cabeça. “Não admira que digas esses disparates todos. Podes ter muita cultura filosófica, isso não contesto, mas a tua bagagem de história militar, desculpa que te diga, deixa muito a desejar.
O Moltke, meu caro, foi o general prussiano que invadiu a França em 1870. Um grande general, se queres a minha opinião. “
“Pois fica sabendo que é a primeira vez que ouço falar nesse gajo. “