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“Já percebi. Pois o Moltke não era um tipo de meias-tintas, dizia o que muitos pensavam mas não se atreviam a enunciar. Vai daí, denunciou a paz, dizendo que a paz duradoura não passa de um sonho, ainda para mais um sonho desagradável. Foi ele quem notou uma evidência de que ninguém quer falar, a de que a guerra é uma parte necessária da ordem de Deus. “

“Ó Ranhoso, e tu acreditas nisso? “

“Então não hei-de acreditar? Olha para a história, Afonso, olha para o nosso passado. O que vês? Guerras, sempre guerras. Isso só pode significar uma coisa, que as guerras fazem parte da nossa humanidade, da nossa natureza, são um mal necessário e vão sempre existir. O Moltke e o Hegel é que têm razão, podes crer. “

“Podia citar-te outros autores que dizem exactamente o contrário. “

“ Por exemplo “

“Por exemplo, o general Fortunato José Barreiros. “ Era um antigo comandante da Escola do Exército, autor do Ensaio sobre os Principios Geraes da Strategia e de Grande 99

Tactica. “Ele considera a guerra o maior flagelo que uma nação pode sofrer, sendo conveniente abreviá-la o mais possível. “

“O Barreiros está ultrapassado. “

“Há ainda o Voltaire e o Adam Smith, que dizem que a guerra é o resultado de leis erradas, falsas percepções e interesses ocultos. “

“Líricos. “

Afonso suspirou, resignado.

“Olha, Ranhoso, só espero que não haja nenhuma guerra que te faça engolir essas tuas ideias. “

“E eu, Aprumadinho, espero que haja uma guerra para tu veres se tenho ou não razão. “ Ergueu o indicador direito e adoptou um tom professoral, pomposo. “São as guerras que fazem os grandes homens. Olha para o duque de Wellington, olha para Napoleão, olha para Afonso Henriques. Todos eles grandes homens, todos eles homens de guerra. Mata um homem por dinheiro e és um criminoso. Mata mil homens por uma ideia e és um grande génio. São assim as coisas. O próprio Nietzsche admitiu que o colapso da nossa civilização é um pequeno preço a pagar para que tenhamos génios como Napoleão.

Nietzsche, meu caro Aprumadinho, observou que a infelicidade das pessoas insignificantes de nada vale a não ser nos sentimentos dos poderosos, a crueldade espiritualizada e intensificada é a mais elevada forma de cultura. “

“O Nietzsche é parvo. “

“Não, Afonso. O Nietzsche é um génio “

Os choques intelectuais com Trindade criavam em Afonso um sentimento ambivalente. Por um lado, adorava o duelo de ideias, o prazer da discussão filosófica, a descoberta de novos caminhos, a exploração de conceitos diferentes, a revelação de novidades.

Mas, por outro, debatia-se com um contraditório sentimento de fascínio horrorizado, descobria-se seduzido por aquelas ideias tão radicais e agressivas e, ao mesmo tempo, atemorizado por alimentar essa atracção, experimentava uma repulsa moral em relação aos valores tão antagónicos daqueles que adquirira no seminário, intuía que o amigo despertava em si uma racionalidade animal que só a força da vontade moral podia reprimir. Por isso mesmo, apenas procurava Trindade quando desejava uma conversa estimulante, combativa.

Por estas razões, o seu amigo mais próximo não era o Ranhoso, mas Gustavo Mascarenhas, um irrequieto rapaz de Vila Real que conhecera logo nos primeiros dias.

Afonso achou curiosa a coincidência de os seus melhores amigos serem transmontanos, já no seminário o seu grande companheiro tinha sido Américo, o gorducho de Vinhais.

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Mascarenhas não era gorducho, mas encorpado e musculoso, tinha até um certo aspecto de troglodita, embora fosse inteligente e divertido. Provinha também de uma família de militares, o pai era coronel de cavalaria e Mascarenhas pretendia seguir-lhe os passos. Para não o acusarem de seguidismo e falta de imaginação, optou antes por infantaria, até porque em Vila Real estava instalada Infantaria 13 e convinha-lhe ficar perto de casa, sempre era mais confortável.

Como se encontravam ambos longe da família, aos domingos Afonso levava Mascarenhas com frequência ao football, mas divergiram nas simpatias. O rapaz de Rio Maior era um supporter do Sport Lisboa, mas o de Vila Real preferia o Sporting Club e ambos discutiam frequentemente a importante questão de determinar quem eram os melhores players. Afonso atirava-lhe à cara a ideia de que, sem os oito atletas que fora buscar ao Sport Lisboa, o Sporting Club não seria nada nem ganharia a ninguém, mas Mascarenhas defendia-se com Francisco Stromp, o craque do emblema do leão que não viera do club da águia, e insistia em que o Sporting era um club a sério, tinha campo e instalações adequadas, enquanto o Sport Lisboa não passava de um bando de maltrapilhos.

O football e as suas rivalidades preenchiam assim as suas conversas, a par de “as gajas”, claro, mas Afonso tinha igualmente outros interesses. Passava tardes fechado na biblioteca da Escola. Apreciava o cheiro adocicado a papel velho que ali enchia o ar e deliciava-se com o aspecto distinto dos armários carregados de livros e encostados às paredes, a sua madeira de mogno trabalhado a contrastar com o soalho de cerejeira clara envernizada. Havia escadas em caracol em duas esquinas da biblioteca, permitindo aceder a um varandim de mogno que se estendia por todo o perímetro da sala, a uns três metros de altura e onde se encontravam mais livros, local por onde o cadete gostava de deambular a examinar as lombadas à procura de exemplares com títulos que achava pitorescos, como Instrucções para o campeonato do cavallo de guerra, Architectura sanitária, Nomenclatura de machinas de valor e O combate de infanteria contra cavallaria. A grande maioria das obras ali guardadas eram textos militares, mas Afonso descobriu exemplares das Les Voyages extraordinaires de Júlio Verne, editadas pela Collection Hetzel. Como lia bem francês, cortesia do padre Fachetti, devorou a voyage au centre de la Terre e Michel Strogoff e acompanhou com divertida atenção os absurdos problemas balísticos propostos em De la Terre à la Lune.

Verne fazia-o sonhar, mas a biblioteca dispunha de poucos livros de ficção e Afonso viu-se forçado a levar frequentemente romances para o local, obras que lia absorvido, as páginas iluminadas pela luz natural que penetrava difusamente pelas duas grandes clarabóias abertas no tecto. Foi ali que conheceu Machado de Assis e agonizou com a 101

dúvida de saber se Capitu tinha ou não traído Bentinho em Dom Casmurro, foi ali que devorou Eça de Queiroz e se escandalizou com O Crime do Padre Amaro, ele que imaginava que os tormentos da carne só o atacavam a si e a mais uns poucos no seminário.

Primeiro recusou-se a aceitar aquilo, bem que o tinham avisado de que esse era um livro de pecado, de luxúria, de volúpia, onde é que já se viu descreverem os padres daquela maneira? como se atreveu o escritor a colocá-los naquela figura? que falta de respeito, devia ser proibido.

Mas à noite, meditando sobre o que lia, ia pensando que talvez aquilo não fosse um disparate. Lembrou-se de que Santo Agostinho abordara o problema da sexualidade e foi consultar as suas Confissões. No meio do texto, por entre as assombrosas revelações da promiscuidade sexual do santo quando jovem, sobressaiu a súplica de Santo Agostinho a Deus, a quem implorava “Senhor, faz-me casto, mas não ainda“. Mas não ainda. Pouco a pouco Afonso acabou por ir concluindo que, feitas as contas, aquela era afinal uma tentação universal, “todos são do mesmo barro”, esta curta frase de Eça, simples mas poderosa, ficou-lhe cravada na mente, sim, é evidente, todos são do mesmo barro, bem vistas as coisas é mesmo isso, que afirmação tão reveladora e verdadeira, se até Santo Agostinho cedera à pecaminosa tentação, o que dizer dos outros, o que dizer do padre Álvaro? Pois, o padre Álvaro. Afinal de contas, até o padre Álvaro, o bom padre Álvaro que o acolhera e o ajudara em Braga, era feito daquele barro. Mesmo o austero vice-reitor, casto e castigador, justiceiro e vingador, tinha certamente as suas tentaçõezinhas, se calhar, quem sabe, se lhe vasculhassem os podres, também ele mereceria a sua cartita de prego, a cartita que por muito menos ele passou a Afonso mas que jamais endereçaria a si próprio por pecados quiçá bem piores.