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Ah, os filisteus!

A entrada de 1908 foi agitada. No dia 28 de Janeiro começaram a correr no dormitório da Escola do Exército notícias de que estava em marcha uma revolta para derrubar a monarquia. O governo reprimiu a rebelião, deteve os chefes dos revoltosos e conseguiu do rei a assinatura de um decreto que permitia enviar qualquer suspeito para o degredo sem julgamento prévio. Trindade mostrava-se assustado, possivelmente o seu pai republicano não estaria em segurança, e Afonso confortou-o, abstendo-se temporariamente de o interpelar pela sua alcunha de Ranhoso. Mas os acontecimentos precipitaram-se dois dias depois, a 30. Os cadetes estavam na aula de Escrituração quando um oficial entrou bruscamente na sala, parou junto ao professor e voltou-se para a classe.

“O rei morreu”, exclamou. “Viva o rei! “

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As aulas foram interrompidas, as bandeiras azuis e brancas de Portugal colocadas a meia haste, havia oficiais que pareciam desnorteados, corria-se de um lado para o outro, semblante carregado, medo, esperança, fúria, alegria, lágrimas, sorrisos, pesar. O que foi?

morreu mesmo? não estará antes ferido? o gordo finou-se finalmente! quem governa? vão pagá-las! a monarquia caiu? cabrões dos republicanos! terá sido a Carbonária? As informações circulavam de boca em boca, contraditórias, a verdade misturava-se com os boatos, estava instalada a confusão, o diz-que-disse, a desorientação.

Incapaz de permanecer mais tempo naquela incerteza e excitado com a magnitude dos acontecimentos, Afonso saiu com Gustavo Mascarenhas e apanhou dois eléctricos até à Praça do Commércio, diziam que tinha sido ali o regicídio, assim era de facto, as lojas encontravam-se fechadas e a praça estava guardada pela polícia municipal, aproximaram-se da zona do Kioske, era ali que tinha sido efectuada a matança, ainda se viam vestígios de sangue no piso. Os guardas que vigiavam o local, inicialmente relutantes, depois com volunta-rismo, contaram tudo aos cadetes. El-rei D. Carlos fora abatido a tiro quando vinha de Vila Viçosa num coche aberto, o príncipe herdeiro, D. Luiz Filippe, também tinha sido morto ao desembainhar a espada, o outro príncipe, D. Manuel, ficara ferido num braço, a rainha D. Amélia estava em estado de choque, ela que fora uma heroína, uma verdadeira heroína, “vejam lá, coitadinha, tentou travar as balas com um ramo de flores”, pormenor muito comentado esse, “com um ramo de flores”. Os dois assassinos acabaram mortos a golpe de espada pelos polícias municipais, bravos homens que agora guardavam, com um zelo e aprumo que orgulhariam os defuntos, a desolada Praça do Commércio.

Foram tempos agitados os que se seguiram. Os lisboetas deixaram as ruas insultuosamente desertas à passagem do coche funerário com os restos mortais do rei e encheram o cemitério do Alto de São João durante o enterro dos regi-cidas. Ostentavam-se gravatas vermelhas para ofender o luto dos monárquicos, as revoltas populares eclodiram com as eleições de Abril, os teatros encheram-se de versos antimonárquicos, os militares conspiravam em surdina, contavam-se as espingardas, este é nosso, aquele é deles, Afonso ainda não era de ninguém, não passava afinal de um cadete interessado em football, um jovem que antes procurara dedicar-se ao domínio da palavra do Senhor e aos mistérios do universo e da vida e agora se preocupava sobretudo com o manejo da Mauser vergueiro e com o controlo dos segredos da balística e da morte.

Julho trouxe consigo a época de exames. Afonso passou a tudo, excepto a Topographia, forçando-o a voltar para a segunda época, em Outubro. A primeira época terminou a 31 de Julho e o rapaz só ficou mais uns dias para conhecer a Feira de Agosto, 103

um acontecimento comentado pelos cadetes de Lisboa com tanto entusiasmo antecipado que suscitou a maior curiosidade aos que vinham de fora da cidade.

Afonso foi visitá-la logo no dia da abertura e não ficou decepcionado. Erguida em plena Rotunda, a feira logo se revelou um local de grande ani-mação, havia ali um circo de pulgas amestradas, demonstrações de audiofone e dos cilindros Edison com música a pedido, teatros de fantoches, jogos de pim-pam-pum para derrubar bonecas com bolas de trapo, casas de diversões como o Metropolitan Scenic Railway e outras empolgantes atracções. Os vendedores ambulantes apregoavam aos sete ventos os seus produtos,

“bailarinas! bailarinas! “, anunciavam os que vendiam sardinhas, “pencudos! pencudos! “, respondiam os dos carapaus, “olh'ós refilões! olh'ós refilões! “, gritavam os vendedores de pimentos. Via-se ainda gente a vender burrié cozido, fava torrada, tremoços, pão e, inevitavelmente, as bebidas, como o capilé, a limonada e, sobretudo, a boa pinga, eram vários os que exibiam uma grande garrafa de tinto rodeada de copos pequenos e aos berros de “quem quer a viúva e os filhos? “, não deixava de ser surpreendente este espectáculo de folia e festa num país mergulhado em profunda agitação política.

Afonso regressou finalmente a Rio Maior para usufruir de dois ansiosamente aguardados meses de férias. Estava desejoso de se afastar do clima conspirativo da Escola do Exército, dos protestos que enchiam as ruas de Lisboa e sobretudo de Gustavo, que não parava de o gozar pelo facto de o estreante Sporting Club ter ficado em segundo lugar no Campeonato, à frente do Sport Lisboa e apenas atrás do inevitável Carcavellos Club. Por outro lado, levava saudades de Carolina e alimentava a esperança de que, com as boas notas que levava agora para casa, a mãe da rapariga talvez não se importasse de autorizar o reatamento do namorico, afinal de contas ele já era praticamente oficial, sabia esgrimir, usava as Mausers com destreza e os cavalos não tinham segredos para si.

Quando entrou na Casa Pereira para cumprimentar dona Isilda e tentar ver Carolina, aguardava-o uma rude decepção. Dona Isilda recebeu-o com simpatia e felicitou-o pelas notas obtidas, mas, no momento em que Afonso indagou sobre Carolina, a resposta deixou-o pregado ao chão.

“A Carolina está noiva.“

“Como?”

“A Carolina está noiva, Afonso. Vai casar no Outono. “ O rapaz ficou especado a olhar para a viúva, pálido, tentando digerir aquelas palavras.

“A senhora está a brincar, dona Isilda “

“Não estou, não. Vai casar com um engenheiro da Real Companhia de Caminhos de Ferro Portuguezes, um moço muito jeitoso, de boas famílias, gente distinta de Santarém “ 104

Afonso achou a situação extraordinária e inusitada, humilhante até, e não soube o que dizer. Ficou lívido, desconcertado, indeciso quanto ao que deveria fazer. Agradeceu e saiu apressadamente da loja, procurando com ânsia o ar puro da rua para arrumar as ideias.

Lá fora começou a duvidar das palavras de dona Isilda, estaria ela a tentar enganá-lo? Ficou a matutar no assunto, repetindo a conversa vezes sem conta, procurando inflexões reveladoras na voz da viúva, não havia dúvida de que ali havia gato. Nessa noite mal pregou olho, preocupado com o assunto, murmurando frases soltas, “e se fosse verdade?“, deu voltas na cama, “não pode ser”, mais algumas voltas, “disparate, a velha está-me a enfiar o barrete”, as horas prolongaram-se e adormeceu sem dar por isso. Pela manhã seguinte instalou-se bem cedo perto da Casa Pereira, vigiando a loja e o apartamento do primeiro andar onde vivia a proprietária e a filha. Quando viu Carolina sair de casa, interceptou-a e pediu-lhe explicações.