Causava um desgosto lá em casa se não seguisse a carreira. Depois, porque o que eu gostava de fazer não dá para alimentar ninguém. Além do mais, nem tenho talento para me dedicar àquilo que realmente me apaixona. “
“E o que é que o apaixona? “
“A arte. “
Agnès fez um ar de admiração, mostrando-se agradavelmente surpreen-dida.
“Ah, você é um artista? É músico? “
“Não”, sorriu Serge. “Não sou artista nem músico. Mas interesso-me muito pela pintura, adorava saber pintar”
“ Como Cézanne... “
Sim, Cézanne agrada-me, mas há agora outros artistas mais interessantes, artistas verdadeiramente revolucionários. “
“Quem? “
“Picasso, Braque, Derain... “
“Nunca ouvi falar. “
É natural, eles só são conhecidos no meio, e, mesmo aí, nem sempre pelos melhores motivos. “
“ Porquê?”
“Porque a sua pintura viola as regras clássicas. E, quando se violam as regras clássicas... oh la la... há quem não goste.
“E que regras foram essas que eles violaram? “
“Em primeiro lugar, a perspectiva. “ Pegou num lápis e fez um desenho sobre uma folha. “Está a ver? Quando desenhamos qualquer coisa, fazemo-lo sempre a partir de um ponto. É um pouco como as fotografias, são tiradas de um ponto para outro. Nós vemos o outro ponto pela perspectiva do ponto onde a fotografia é tirada ou a pintura é feita. É isso a perspectiva. Mas estes novos pintores decidiram fazer quadros simultaneamente de várias perspectivas. “
“Isso não é possível.”
“Não só é possível, como eles fizeram-no. Picasso começou a pintar objectos com a preocupação de exibir as suas três dimensões, colocando múltiplas perspectivas no mesmo quadro. Faz de conta que são fotografias sobrepostas do mesmo objecto, em que vemos o objecto simultaneamente de vários ângulos, de várias perspectivas. Foi isso o que ele fez, 112
mas não se ficou por aí. Em vez de exibir os objectos como unidades, ele cortou-os aos pedacinhos e passou a pintá-los de forma fragmentada. “
“Mas consegue-se assim perceber a pintura? “
“Não se percebe nada”, exclamou Serge com uma gargalhada contagiante. Abriu os braços e fez um gesto largo com as mãos. “O título do quadro dá-nos uma indicação e nós, a partir daí, conseguimos descortinar o objecto, ele está lá insinuado. Mas, se não soubermos o título, aquilo é apenas um conjunto de indecifráveis figuras geométricas. É
como se o pintor partisse de uma imagem concreta e depois removesse os traços da realidade, criando uma amálgama de formas e cores. “
“E fica bonito? “
“Não sei se fica bonito, é uma questão de gosto, mas olhe que é uma ideia fascinante”
O que Agnès achou realmente interessante em Serge é que a sua conversa era diferente da dos outros rapazes que conhecera. Em vez de tentar projectar uma imagem de homem forte, viril e protector, Serge parecia mais empenhado em falar sobre arte. Tinha alma de artista, olhar sonhador, falas melosas e muitos conhecimentos no meio, graças sobretudo às suas amizades com o pessoal da École des Beaux-Arts. Uma outra característica era a de que se mostrava frágil e Agnès espantou-se a si mesma por se sentir atraída por essa qualidade. Descobriu que gostava de homens frágeis, não sabia porquê, mas a vulnerabilidade tocava-a, mexia com ela, despertava-lhe talvez um meigo sentimento maternal.
Escolheram para segundo encontro o Le Procope, supostamente o mais antigo café do mundo, com fama de ter sido frequentado por Voltaire e Napoleão. Depois de beberem duas chávenas de chocolate quente e de combinarem passar a tratar-se por tu, Serge convidou Agnès a visitar a galeria Kahnweiler, onde, segundo ele, se revolucionava o mundo da pintura. Caminharam os dois debaixo de um guarda-chuva até à Rue Vignon e, ao cruzar a porta da galeria nessa tarde chuvosa, Agnès entrou no universo do cubismo.
Kahnweiler expunha nessa altura vários importantes trabalhos terminados recentemente, todos da autoria de pintores ainda pouco conhecidos, viam-se ali L'Oiseau bleu, de Metzinger, La femme et L'ombrelle, de Delaunay, e Compotier et verre, de Braque.
Mas foram os tons laranja e amarelo-torrado de Femme dans un fauteil, de Picasso, que mais a surpreenderam. Ficou espantada a mirar o desconcertante quadro, interrogou-se até se aquilo seria realmente pintura e hesitou longamente antes de opinar, receava parecer uma parola.
“Esta mulher não tem rosto”, exclamou finalmente, mal contendo a decepção.
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Era o mínimo que conseguia dizer da grotesca imagem exposta diante de si, sentia-se quase defraudada, como um gastrónomo de gosto requintado a quem alguém prometeu gratin de ueues d'écrevisses mas acabou por se ver forçado a comer caracóis fritos.
“Não, ela tem rosto”, argumentou Serge. “O que se passa é que o rosto é reconstruído, tal como todo o corpo “ Apontou para um pormenor do quadro. “Estás a ver isto? São os seios, vêem-se aqui os mamilos. No fundo, a ideia é apresentar um corpo fragmentado onde o todo se reconhece pelas partes. “
“Mas, para além do cadeirão, dos seios e do jornal, eu quase só vejo geometrias... “ Serge sorriu.
“É aí que está o truque. O pintor inseriu figuras sintéticas cubistas, as geometrias, num espaço clássico, tradicional. O efeito é surpreendente, não achas? “ Agnès fez uma careta resignada.
“Lá surpreendente é ele, isso não há dúvida. Mas será mesmo arte?
“A mais pura”, garantiu Serge entusiasticamente. “Eu sei que, para toda a gente que vê isto pela primeira vez, há sempre um choque, estes quadros violam todas as convenções, abalam as nossas mais profundas convicções sobre o que é a pintura. Eu próprio, quando comecei a ver as pinturas cubistas, confesso que não fiquei lá muito convencido. Mas, sabes, isto é como a cerveja. Odiamos de início, mas depois não podemos passar sem ela. “ Ao anoitecer, quando abandonaram a galeria, Agnès deixou Serge colocar-lhe a mão no ombro, enlaçando-se ambos debaixo do guarda-chuva. Começou o namoro nessa tarde e uma semana depois, rendida aos encantos daquela alma de artista, acabou-se-lhe a virgindade.
Os projectos a dois precipitaram-se a uma velocidade espantosa. Ainda o Inverno não tinha terminado e já Serge a convidava para jantar no Pharamond, o famoso restaurante de Les Halles, onde pediram boeuf en daube regado com sidra da Normandia.
Depois da sobremesa, ele deu-lhe as mãos e, à luz das velas e ao som de um violino previamente contratado, propôs-lhe casamento.
“Casa comigo, doce princesa. “
O oui emocionado de Agnès foi brindado com um frutado Beaujolais Villages que ela cuidadosamente provou e sancionou.
Passearam depois pelo Sena de mão dada, até ele a deixar à porta do seu prédio, em St. -Germain-des-Prés. Quando entrou no apartamento, Agnès ouviu a voz do noivo lá fora. Surpreendida, foi à janela, olhou para a rua e viu-o no passeio, junto ao candeeiro, a fazer-lhe uma desafinada serenata, cantando a plenos pulmões Bébé d'amour, uma adaptação francesa da canção inglesa Some of these days, então na moda em Paris: 114
Je veux mourir Oú ma déesse! En ce beau soir Sous ta caresse.
Quando Serge terminou, Agnès bateu palmas e soprou-lhe um beijo da janela.
“Foi magnífico”, disse-lhe. “Mas agora vai-te embora, anda, vai-te antes que te prendam. “
As bodas realizaram-se a 3 de Junho de 1914 na Basilique St. -Sauveur, em Dinan, a terra natal do noivo, na costa norte da Bretanha. Era uma terra aprazível, o ar carregado da maresia atlântica, os aromas salgados do oceano a perfumarem a brisa suave.