encontrava no olho do furacão, o que a deixava mortalmente preocupada. Vivia em sobressalto, pensava permanentemente no marido, na mãe, nos irmãos e na irmã, no pai, o que estarão a fazer neste momento? tentava distrair-se, pensar noutras coisas, mas tudo lhe lembrava a família, estarão bem? todos os pensamentos a conduziam à frente de batalha e a Lille, era ali que se concentrava a sua vida, toda a sua vida, a solidão em Paris tornou-se-lhe opressiva, pesada, insuportável, sentiu-se deprimida, percebeu que não podia continuar assim, “ça ne va pas! “, tinha de fazer alguma coisa, tinha de sair dali. Optou, por isso, por procurar refúgio em casa dos pais de Serge, em Dinan. Preparou uma mala, arrumou lá dentro umas roupas e Mignonne e na manhã seguinte foi até à Gare Montparnasse para apanhar um comboio com destino à Bretanha.
O problema é que meio milhão de parisienses teve exactamente a mesma ideia.
Agnès encontrou a estação de comboios apinhada de gente, eram famílias inteiras de trouxas às costas, inquietas com a aproximação dos alemães, multiplicavam-se os boatos sobre a situa ção no terreno, dizia-se que o inimigo entraria em Paris no prazo de quarenta e oito horas, a febre do medo sucedera à febre da guerra. Milhares de pessoas acotovelavam-se na Gare Montparnasse carregadas de sacos, maletas, caixotes, embrulhos com farnel, crianças a chorar, a ansiedade estampada nos olhos. Agnès foi para a fila do guichet e levou seis horas para comprar bilhete para Rennes.
A odisseia seguinte foi a de conseguir entrar no comboio. Um mar de gente enchia os terminais da estação e só ao fim da tarde, encharcada em suor e cheia de fome, é que logrou subir a uma carruagem. O comboio transbordava de gente, algumas portas nem sequer se conseguiram fechar e estava fora de causa obter um lugar sentado. Agnès passou doze horas de pé, no corredor, encostada a outros passageiros, exausta e cambaleando com sono, suportando os sucessivos pára-arranca da composição em todas as estações e apeadeiros, até finalmente chegar a Rennes, já o Sol nascera. Um coche alugado na estação levou-a, lentamente e aos solavancos, até Dinan, numa viagem que durou mais oito horas, e foi num estado de total esgotamento que se arrastou até à porta da casa dos sogros, um apartamento na Rue de la Lainerie, no coração de um velho bairro de charme medieval. A situação no teatro de operações sofreu um novo volte-face.
O VI Exército francês e uma divisão argelina juntaram-se à brigada de infantaria naval na defesa de Paris, sob o comando do general Galliéni. O comandante-chefe francês, general Joffre, deu a capital como perdida e prosseguiu a retirada do Exército, planeando uma contra-ofensiva para mais tarde. A vanguarda das tropas alemãs imobilizou-se no Marne e, hesitando, começou até a afastar-se para leste, esperando um realinhamento de forças. Galliéni viu a oportunidade e atacou a 4 de Setembro. Confrontado com o facto 118
consumado da decisão unilateral do comandante da defesa de Paris, Joffre suspendeu a retirada e optou por também atacar. O VI Exército, proveniente da capital, atingiu de surpresa o Exército alemão na manhã de 6 de Setembro e derrotou-o após três dias de combate. Os alemães ordenaram uma retirada geral no dia 9 e realinharam as suas forças ao longo do rio Aisne, onde cavaram posições defensivas. Paris estava salva, mas começava a guerra das trincheiras.
A vitória na Batalha do Marne restituiu a confiança dos franceses no seu exército, e muitos parisienses que se tinham refugiado na província começaram a voltar para casa.
Agnès empreendeu o longo caminho de regresso e entrou no seu apartamento de Les Halles em meados de Setembro. As ruas de Paris apresentavam-se ainda semidesertas, com muitas lojas fechadas e algumas vitrinas partidas, produto dos saques ocorridos no auge da confusão. Madame Jolinon, a governanta do edifício onde morava e que permanecera na capital nos dias de incerteza, contou- lhe que os táxis de Paris se tinham mobilizado nos momentos mais difíceis da Batalha do Marne, transportando seis mil soldados de reserva para a frente de combate. Segundo ela, foi isso que salvou o VI Exército e, em última instância, a própria cidade. Era um exagero, claro, mas a mulher limitava-se a repetir o que ouvira, o facto é que os propagandistas não resistiram a difundirem o mito de que os civis tinham desempenhado um papel preponderante naquela acção desesperada, podia não ser verdade mas era óptimo para o moral.
Agnès esforçava-se por atear o fósforo e acender o lume, mas não havia meio de a chama aparecer. Vezes sem conta riscou o fósforo na caixa e nada aconteceu, riscou com tanta força que o pauzinho acabou por se quebrar. Foi buscar outro e outro ainda, mas nada sucedia, por mais que raspasse os fósforos o lume teimava em não dar sinal de si.
“Malditos fósforos”, comentou para Mignonne, irritada. “Será que estão molhados? “ Apalpou a cabeça negra do último em que pegara e verificou que estava de facto húmido. Praguejou e foi procurar uma segunda caixa ao armário. Conseguiu finalmente acender o fogo e colocou a panela sobre a chama. Havia muito tempo que lhe apetecia um gras-double e nesse dia enchera-se de paciência para cozinhar o prato. Deixou momentaneamente a panela ao lume e foi à janela espreitar o céu. O sol desaparecera com o Verão, Setembro aproximava-se do fim e o Outono instalara-se bruscamente em Paris, cobrindo a cidade com um sombrio manto cinzento.
Toc. Toc. Toc.
Agnès sentiu baterem à porta. Ainda de avental foi ver quem era. Abriu a porta e deu de caras com um correio da Armée de Terre, de boné na mão e um saco a tiracolo.
“Madame Marchand? “
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“Oui? “
O homem estendeu-lhe um envelope. Intrigada, ela limpou ao avental as mãos ainda molhadas, pegou na carta e rasgou a faixa lateral do envelope. Era um postal do Ministère de la Guerre a lamentar ter de a informar de que o marido, o soldado Serge Marchand, morrera como um herói no cumprimento do dever e na defesa da pátria.
Agnès releu o texto, incrédula, boquiaberta, olhou para o homem do correio à procura de um sinal de que aquilo não passava de uma brincadeira, o homem baixou os olhos, embaraçado, ela voltou a mirar o postal e, apreendendo finalmente o pleno significado daquela tremenda notícia, sentiu o mundo girar e desmoronar-se debaixo dos pés, o chão a rodopiar como um pião descontrolado, a memória da voz de Serge cantarolando “je veux” mourir, o ma déesse, en ce beau soir, sous ta caresse a ecoar-lhe na mente como um presságio que ignorara, a melodia afastando-se devagar, como se fugisse, como se se afastasse num túnel longínquo, a voz a desaparecer, a esfumar-se até se perder num profundo e doloroso silêncio.
Aos vinte e três anos, e apenas três meses depois do casamento, Agnès estava viúva.
O postal não dava pormenores sobre a morte de Serge nem dizia onde se encontrava o corpo, algo que tornou o luto ainda mais difícil. Os dias que se seguiram à recepção da notícia foram de grande desorientação. Agnès recusou-se a sair de casa e foi madame Jolinon quem lhe deu apoio, prepa-rando-lhe as refeições, fazendo-lhe alguma companhia, tentando consolá-la.
“Courage, ma petite, você ainda é nova, é duro mas tem de resistir, c'est la vie!
Também eu já perdi o meu Honoré, sei o que custa, mas aqui estou pronta para outra. “ Os familiares de Serge visitaram-na com decrescente frequência. Sem o marido, nada a ligava àquela gente. Foram-se gradualmente afastando até deixarem de se ver. Mignonne foi guardada numa mala para não mais ser tocada, era uma forma de enterrar a infância, cujo fim a notícia da morte de Serge tinha terminalmente precipitado. Deixou de ser uma mulher feliz e despreocupada, o peso do mundo desabou-lhe sobre os ombros.