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Para Agnès começou a tornar-se evidente que não podia continuar em Paris. Não tinha o marido para a sustentar, a ela e aos estudos no último ano de Medicina, e o apartamento de Les Halles tornara-se insuportavelmente vazio. O problema é que a ligação à sua família se mantinha cortada. Os alemães ocupavam parte da Flandres e Lille ficava agora por detrás das linhas inimigas. Isso significava que nem ela podia regressar a casa nem os pais lhe podiam enviar ajuda. De resto, não era possível sequer saber o que se passava em Lille, não tinha notícias dos pais e de Claudette e, após o que acontecera a Serge, alimentava os piores pressentimentos em relação a Gaston e François.

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Deixou de estudar e começou a encarar seriamente a possibilidade de arranjar trabalho. Com a ida dos homens para a guerra, milhões de francesas estavam já a substituí-

los nos empregos, até porque os salários eram melhores do que estavam habituadas. Havia cada vez mais mulheres a conduzirem eléctricos e ambulâncias, embora a maior parte estivesse a convergir para as fábricas de armamento. Agnès admitiu tornar-se uma munitionette, como eram conhecidas essas operárias, mas o destino reservava-lhe outros planos.

À entrada do Inverno, Agnès foi comer uma choucroute à Brasserie Bofinger, na Place de la Bastille. Sentou-se num banco de couro da cervejaria a observar distraidamente os ricos vitrais do estabelecimento, a mente a vaguear pela sua vida, pelas opções que lhe restavam, pelas difíceis decisões que teria de tomar. A cervejaria encontrava-se quase deserta, não havia muitos jovens para a frequentarem, estavam quase todos na guerra. Foi talvez por isso que os seus olhos pousaram num homem de meia-idade que acabara de entrar e fechava o guarda-chuva junto à porta. Reconheceu o barão Jacques Redier, o velho amigo do pai.

“Senhor barão! “, chamou.

O barão Redier virou a cara e os seus olhos encontraram-se, mas ele manteve uma expressão interrogativa, não a identificara. Agnès fez-lhe sinal para se aproximar. Ele hesitou, mas obedeceu.

“Minha senhora”, cumprimentou. “A que devo a honra? “ “Senhor barão, não se lembra de mim? Sou a Agnès, estive em sua casa.”

“Pardon “

“Sou Agnès Chevallier, a filha de Paul Chevallier, de Lille. Lembra-se de mim? “ O rosto do barão abriu-se num sorriso caloroso, efusivo até. “Agnès! Meu Deus, como estás mudada! Estás uma mulher, rapariga, nem te reconhecia!”

“Sente-se, sente-se “

O barão acomodou-se.

“Ah, mas que surpresa! “, exclamou. “Não esperava encontrar-te por aqui, palavra de honra. Estás bonita, hã? Uma verdadeira flor. “ Ficou a mirá- la um instante. “Então a tua família? “

O sorriso de Agnès desfez-se.

“Os meus pais e a minha irmã estão em Lille e não tenho notícias deles desde que a guerra começou. “

“Oh diabo! Isto é um aborrecimento, a guerra”. Suspirou. “Felizmente que vai acabar depressa. “

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“ O senhor acha?”

“É o que dizem os jornais. Além do mais, já impedimos os boches de chegarem aqui a Paris. Agora é tudo uma questão de tempo até que os políticos se entendam. Portanto, não estejas preocupada que vai correr tudo bem, tenho a certeza disso. “

“Quanto tempo? “

“Não sei, talvez cinco ou seis meses... “

“É muito... “, desabafou Agnès com desânimo.

“Não te rales, rapariga. Seis meses passam depressa”, observou o barão. “O que estás a fazer em Paris? “

“Oh, estou a estudar Medicina. “

“E com os teus pais lá em Lille, como é que arranjas dinheiro para financiar o curso?”

Agnès baixou os olhos.

“É esse o problema”, disse. “Vou ter de suspender o curso e ir trabalhar. “

“Trabalhar? É o que mais faltava! “

“Porquê? “, admirou-se Agnès. “Tenho de viver, não é? “ “Sim, claro, mas nem pensar em trabalhar. “

“Como assim? Há muitas mulheres que estão a ir para as fábricas de armamento para. “

“Nem penses nisso! “, cortou o barão. “Eu não me chame Jacques Redier se não te ajudar. “

“Mas... “

“Olha, por que não vens para Armentières comigo? Desde que a minha mulher faleceu que me tenho sentido muito só naquele palacete imenso. “

“A senhora baronesa faleceu? Oh, lamento muito. “ “Obrigado. Ela morreu há dois anos, coitadinha, vítima daquela tuberculose crónica de que padecia há muito tempo. De modo que só tenho o Marcel para me fazer companhia. Ora, se há uma coisa que aprendi é que os mordomos são uns companheiros entediantes. Preciso por isso de alguém que encha o château de alegria. Por que não vens para Armentières? “

“Mas, senhor barão, eu não posso ir para Armentières... “ “Ah não? E ficas aqui a fazer o quê? A passar fome? Vais para as fábricas colocar pólvora nos cartuchos? O que é que te prende a Paris, valha-me Deus? Não és casada, pois não? “

“Sou viúva. “

O barão abriu a boca de espanto.

“ Como?”

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“Casei-me há pouco tempo, mas depois veio a guerra e o meu marido alistou-se... “ O barão passou a mão pelo cabelo.

“Compreendo”, murmurou, constrangido. “Pobrezinha, deves estar a passar tempos difíceis”. Fez uma pausa. “Mais uma razão para vires para Armentières comigo, não estás aqui a fazer nada. Diz lá, há alguma coisa que te prenda a Paris? “ Agnès ficou parada a olhar para ele.

“Bem... eu. “, gaguejou. “Em bom rigor, nada. Mas não me parece de bom tom ir para o seu château. “

“Que disparate! “, exclamou o barão. “Conheço-te desde pequena. Precisas de ajuda, estás sozinha, a mim também me dá jeito arranjar companhia, o que mais queres? Tenho obrigação de te ajudar, sobre isso não resta a menor dúvida. Além do mais, esta é apenas uma solução temporária, até a guerra acabar. Quando a paz regressar, vais a Lille ter com a tua família e voltas aqui a Paris para concluir o curso “

“Mas, senhor barão, não posso aceitar isso. “

“Não digas palermices. Na situação inversa, tenho a certeza de que o teu pai ajudaria um filho meu. “ Fez um gesto enfático com a mão. “Está decidido, rapariga. Vens para Armentières comigo e não se fala mais nisso. “

Foi assim que Agnès se viu, no princípio de 1915, instalada no Château Redier, o enorme casarão onde passou tantos fins de semana na sua meninice. O palacete dava-lhe conforto e segurança, mas, por outro lado, tinha o enervante inconveniente de estar relativamente próximo das primeiras linhas. O permanente marulhar da artilharia, feito de um furioso mar de ondas que teimosamente fustigava rochedos invisíveis, deixava-a algo inquieta. Com o tempo, porém, foi-se habituando aos sons daquela longínqua mas incansável tempestade, o trovoar constante transformou-se numa rotina, num barulho de fundo que se vai aprendendo a ignorar.

O barão tratava-a como uma filha, o que, dada a diferença de idades e a proximidade de Redier ao seu pai, parecia natural. A relação entre os dois foi, todavia, evoluindo gradualmente, um sorriso aqui, um toque ali, uma palavra acolá, até se tornar inevitável a conversa que tiveram no salão, numa tarde cinzenta e ociosa, depois de terem tomado o chá das cinco e trincado umas madeleines de fabrico caseiro.